Para melhor ilustrar a problemática do assunto sugerido para debate na primeira postagem, transcrevo - texto editado e resumido - mais um capítulo do livro que tento publicar (Os execrados da av...), com o intuito de fazer sentir-se (mesmo em pequena medida) o significado e a necessidade de discutir-se esse modo obtuso de perceber a justiça.
Quando a viatura policial ganha a avenida Zaki Narchi, avisto o casarão velho e mal conservado de iluminação deficiente. 18 de abril de 2.006, o dia da minha injusta prisão, o dia em que algo em mim se perdeu. Encravado na confluência das avenidas Gal. Ataliba Leonel e Zaki Narchi, no bairro de Santana, na Zona Norte da cidade de São Paulo, existe uma construção obscura, com seus muros irregulares; calçadas mal conservadas; arames assimétricos e janelas residenciais gradeadas, formando em um cone obtuso, de arquitetura confusa e aparência repugnante, com suas paredes lúgubres espremidas entre prédios comerciais e as tradicionais e gigantescas Penitenciária Feminina da Capital e Penitenciária do Estado, uma edificação que passa quase despercebida, dissimulada entre o trânsito intenso da região e o grande fluxo de passantes, os quais - acostumados com a intensidade da movimentação urbana, com a profusão de estilos e com a poluição visual de uma das mais cosmopolita de todas as cidades do mundo - ignoram o que se passa no interior daqueles muros, que escondem uma das mais fascinantes micro-células da sociedade brasileira: O Presídio Especial da Polícia Civil. As grades nas janelas exercem inevitável magnetismo para os olhos de quem por ali passa e fita o P. E. P. C., despertando a curiosidade invariável que o cárcere representa no imaginário das pessoas, porém, elas vêm ali apenas mais um estabelecimento prisional, ou outra cadeia comum, que aos olhos desavisados nada têm de especial. Essa relativa discrição deve-se talvez à falta de imponência da construção, ou à evidente publicidade negativa que o órgão representa para o governo do estado, que parece esforçar-se para deixá-lo com esse aspecto de prédio abandonado, de prisão dissimulada, de importância secundária, que não chame a atenção para essa extravagância jurídica que beira a inverossimilhança. Presídio destinado a segregar policiais civis (detidos provisoriamente ou cumprindo condenação penal), o P. E. P. C. difere de todos os outros estabelecimentos prisionais do estado, sendo o único (...), vigiado e administrado por policiais civis da mesma carreira, funcionando com regulamento próprio e normas internas peculiares (ressalte-se que o presídio “Romão Gomes”, que destina-se a encarcerar policiais militares, segue a mesma inflexibilidade dos demais presídios do estado de São Paulo), o que o torna um segmento ímpar da história carcerária brasileira. O P. E. P. C. está subordinado à Corregedoria da Polícia Civil Paulista (ele foi criado através de uma resolução SSP/33 de 5 de novembro de 1.974) e segue a mesma formação cultural do seu órgão criador, a qual baseia-se num paradoxo entre a improvisação e informalidade e a rigidez dos seus ritos de polícia judiciária, avalizando um dito freqüente repetido reservadamente pelos funcionários desta instituição “aqui o provisório dura para sempre...”, resultando numa estrutura única, palco de estórias fantásticas, com personagens quase surreais, dessa acomodação provisória que já dura 32 anos. A Polícia Civil do estado de São Paulo apresenta um modo particular na sua estruturação, formação e prestação de serviços. As carreiras policiais civis diferem de todas as outras do funcionalismo público do estado, principalmente por seu modo de atuar, conduzir seus serviços e no seu ambiente de trabalho. No balcão de uma Delegacia de Polícia são depositadas diariamente doses elevadas de emoção e paixão, num turbilhão de acontecimentos que clamam por raciocínios rápidos, deliberações urgentes e pré-julgamentos. Diante desse quadro, seus funcionários envolvem-se cotidianamente com todas as camadas sociais, todos os níveis de humores e, invariavelmente, problemas de toda natureza. Apesar das condições adversas de trabalho, da má remuneração e do desprestígio com que a profissão é vista atualmente, exercê-la é motivo de orgulho para as pessoas que a compõe, as quais sentem no trabalho uma extensão de sua vida pessoal, trabalho este que - não obstante o resultado satisfatório de seus serviços - executam de forma quase mambembe, improvisada, contrastando com o excesso de protocolo da Polícia Militar do mesmo estado, redundando em uma cultura profissional confusa, com atitudes que às vezes excedem a volúpia em elucidar dramas sociais, ultrapassando a linha tênue que a separa do abuso de autoridade e da usurpação da competência do julgamento. Na esteira dessa singularidade da carreira policial civil paulista destaca-se seu correspondente no sistema penitenciário da mesma unidade federativa: o P. E. P. C.
Em São Paulo garoa intermitentemente em uma madrugada fria, que combina perfeitamente com o ar funesto do local e com o meu estado de espírito. Adentro o presídio, transpasso o portão de entrada conduzido por policiais da Corregedoria, sem algemas, carregando minha própria bagagem, uma bolsa com roupas e objetos pessoais. Sou apresentado aos policiais de plantão que me tratam com respeito - talvez por pertencerem à mesma carreira e sentirem-se constrangidos. Não revistam meus pertences, apenas perguntam se há somente roupas na bolsa, nitidamente mais preocupados com a burocracia dos papéis referentes à minha inclusão. È indescritível a sensação de ser classificado em uma cadeia. É como não ter mais identidade, tudo o que sua figura representava perde o significado, como se sua cidadania tivesse expirado o prazo de validade, você passa a ser algo que não deu certo e precisa ser escondido do convívio público, a humilhação é quase insuportável! Prisão preventiva, instituto muito criticado por parcela considerável de estudiosos da ciência do direito, visto que suprime a liberdade antes mesmo do julgamento, causando ao eventualmente inocente a desmoralização e a depressão aos seus sentimentos de dignidade. Segregar preventivamente, antecipadamente, como se eu pretendesse me tornar um foragido, sendo funcionário público, ocupando cargo de confiança (chefia), e tendo bons antecedentes. Como se eu pudesse ameaçar alguém, colocar em risco a ordem pública, e, principalmente, sem suporem que eu pudesse ser inocente e merecesse me defender em liberdade. Ignoram que a prisão em regime fechado é um mal irreparável para o espírito, para a vida social e para a família! Penso no meu passado de ideais de esquerda; na minha formação familiar e na minha dedicação à profissão, e sou invadido por um invencível sentimento de revolta. Mudam radicalmente a vida de um cidadão, com uma enxurrada de papéis frios, num alucinante processo Kafkaniano, e o destacam do seu meio, para, posteriormente, averiguarem a veracidade da denúncia. Sinto um turbilhão de indignações, que de certa forma me exauri e me prostra. Percebo minha defesa reduzida para satisfazer egos de altos funcionários públicos (juízes, promotores de justiça e delegados de polícia), contudo, tenho que alojar essa indignação em algum canto do meu ser, pois, dali para frente estou sob a custódia do estado, deixo de existir por um período e passo a pertencer a uma instituição carcerária. Deixo para trás (...). Passo a primeira grade de ferro e estou formalmente incluído no sistema penitenciário. Agora tenho que testar meu poder de mimetismo e me misturar àquela triste realidade, procurando me manter lúcido, me manter vivo, dentro daquela inexplicável ilha de desesperança. Sou direcionado a uma escada que dá acesso às celas do pavilhão, onde dois internos estão sentados e fumam despretensiosamente. Noto se aproximando a silhueta de um interno, cuja figura confunde-se com a própria história daquele estabelecimento, o indivíduo conhecido como “Polaco” - espécie de gerente do local - que, com seu prestígio entre os detentos e um certo trânsito na administração, mantém a paz na medida do possível e das regras do cárcere. (...). O pavilhão dos quartos/celas é dividido em dois andares, cada andar subdividido em três alas, e cada ala possui duas celas e um banheiro. As portas das celas são de madeiras (residenciais), o que denota ao local aspecto de quarto, mas, imediatamente após transpô-las, depara-se com as impactantes grades que segregam os detentos das demais instalações do presídio. As alas são separadas pelas referidas grades, que são trancadas as 22:00h, após a contagem dos presos, e reabertas as 08:00h. Em cada quarto/cela de 4x3 metros existem três beliches de ferro e um armário de madeira, os quais são divididos respeitando o quesito antiguidade na cadeia, porém, às vezes, o poder econômico fala mais alto e os espaços são comercializados. As janelas são de madeira (residenciais), com grades de ferro, e cada centímetro do lugar é disputado e reclamado por alguém. Há ainda o “Cingapura”, quarto no andar térreo com aproximadamente oito beliches apinhados e um banheiro coletivo, o pior ambiente do presídio; só mais habitável que o “Cinguinha”; um quarto também no andar térreo, sem janelas, com paredes revestidas com azulejo, um banheiro sem porta e alguns beliches de madeira; provavelmente uma cozinha desativada adaptada para abrigar o excesso de detentos. Segundo os presos mais antigos o ambiente no presídio está um “paraíso”, com aproximadamente oitenta detentos, com cama para todos. Relatam que a população carcerária já chegou a cento e cinqüenta homens convivendo no mesmo espaço, e quem chegava dormia no “sarcófago” (espaço no chão embaixo dos beliches) e muitas vezes, por falta desse espaço alternativo, na “praia” (espaço livre no chão entre as camas). Adentro o quarto/cela, avisto os beliches brancos de ferro, a janela de madeira pintada de branco e o armário de madeira também pintado na cor branca, porém, muito longe de significar a paz que a cor normalmente representa. Escalo a parte superior do beliche mais próximo à janela - com todo o cuidado para não incomodar os demais internos - e me deito com roupa e tudo, tendo nos bolsos um rosário que ganhei de minha irmã e um porta funcional/distintivo vazio, o qual carrego instintivamente.
Passo a madrugada em claro, tentando relaxar o corpo, mas fico remoendo pensamentos, sentindo o metabolismo acelerado. Ao amanhecer, inesperadamente, sinto uma paz interior, vislumbro em pensamento o sorriso do meu filho (...), de apenas cinqüenta e oito dias de vida; a beleza lépida de minha mulher Patrícia e o futuro reencontro com minha família. Lembro dos meus filhos (...), e adormeço... Passo o final da madrugada numa espécie de transe, entre pensamentos, lembranças e o barulho constante da movimentada avenida Zacki Nark.
P.S.: Agradeço muito aos comentários deixados nesse blog, e mesmo os comentários enviados diretamente para o meu e-mail. Obrigado pelas palavras de incentivo, pelo apoio e pelas sugestões. O debate é o melhor caminho para pensarmos sugestões para equacionarmos este grande equívoco e seus desdosbramentos negativos.
P.S.: Continuo na luta para tentar editar o livro mencionado, qualquer ajuda será bem vinda!
10 comentários:
Nossa! Nunca pensei a coisa por esse lado... E qual é sua situação agora?
Nunca gostei de polícia "raça do caralho", mas tb nunca pensei nessa outra face...
Fé irmão!
Você voltou a trabalhar?
Abraços e sucesso!
Olá Djalma, sou aluno da Mara e Do Ivam em Limeira. Eles comentaram de seu blog e vim conferir!
Em primeiro lugar, parabéns pela iniciativa gostei muito da página bem como dos textos e assuntos abordados por você.
Passarei a olhar a página com mais freqüência e espero podermos discutir muito sobre os temas que você propõe!
Mais uma vez meus parabéns, e muita sorte nessa nova empreitada!!
Abraço!!
Júlio Marcondes
jucabi@ibest.com.br
Djalminha meu querido, vc sabe o quanto te admiro e amo como irma, eu nao tenho a menor noçao do que se passou com vc, porque mara nunca me disse, mas lendo seu blog acredito que tenha sido mto grave! Perdao por nao ter podido te ajudar a tempo. Estou vivendo em outro pais, na França e aqui nao ha injustiça sem razao. Aqui o ser humano è respeotzdo como tal...mto embora nao haja perfeiçao, mas aqui o ser humano è bem vindo e qualquer agressao è tida como um grande erro. Eu nao tenho a menor noçao do que se passou com vc, mas eu ficaria mto feliz se vc me contasse, porqie eu te amo muito, meu endereço de email agora _è beatriz.buonomo@orange.fr , escreva por mim, beijosssssssssssss
Mêu moro em sampa passo direto ali na Zarki e nunca me liguei nesse presídio...
faz tempo que ele existe?
Vem com esse papo de outra face, ceis gosta é de da tapa na cara de vida loca da quebrada, filho da puta
Olá Djalma!tenho 46 anos e sou profa.do ensino médio na rede pública.Trabalho num bairro periférico e percebo de perto a relação tensa que meus alunos e seus pais tem com a polícia.É uma relaç~co paradoxal ao mesmo tempo que repudiam os atos de viol~encia de alguns policiais, esperam proteção por parte da polícia. Por vezes fico pensando onde está p nó dessa história, talvez você pudesse me esclarecer um pouquinho.
Obrigada e sorte com o livro.
Olá Colega....
Também passei por lá, por um flagrante forçado da corregedoria, tanto que fui absolvido em tudo...mas fui escrachado em jornais como membros de quadrilha de extorsão... não sei o que faço... dizem que se eu processar o estado posso sofrer represálias e ai vc processou o estado? está trabalhando? meu e-mail é: pcwlpar@hotmail.com
Um abraço
Muito bom.
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