Às vezes, a realidade parece ficção nessa atribulada vida cotidiana de sobrevivência arrancada à fórceps. Por mais que me esforce, tenho enorme dificuldade em entender as relações humanas, em assimilar sem pré-julgar as escolhas pessoais, em compreender o grau de importância que as coisas representam para cada indivíduo, e a aceitar o poder de indignação ou omissão dos membros de nossa sociedade. Acompanhem a trajetória trivial e corriqueira deste brasileiro, durante a semana que passou, nesse fragmento de uma estória particular.
A semana começa com o êxito de um filho que, após ser abandonado pela mãe, e entregue a uma família de estranhos há aproximadamente vinte anos, consegue localizar a sua genitora, através de uma busca digna de uma odisséia, com desmedida felicidade. A mãe (genitora) "errou de João" como na música do Chico Buarque, e amasiou-se com um canalha de vida desregrada, e após gerar três filhos, passou a morar na rua, comer sobras de lixo, viver de doações e apanhar diariamente. Julgando não ter como sustentar as três crianças, a genitora optou por "doar" os filhos para famílias abastadas, com dificuldades para ter filhos legítimos. Justamente nesse momento, essa mulher (bonita e atraente, apesar dos maus-tratos da vida) conheceu um homem bom e digno, imigrante nordestino, trabalhador e altruísta. Porém, a condição não permitia - segundo suas avaliações - "criar" todas as crianças, e dois meninos foram adotados por famílias desconhecidas, e uma menina foi criada pelo casal, que posteriormente, quando a vida melhorou um pouco, teve mais três filhas. A família viveu em um lar regular, feliz e rígido por aproximadamente dezoito anos: o pai, a mãe e as quatro filhas; com uma vaga, dolorosa e silenciosa lembrança dos dois meninos lançados ao mundo. A mãe, após esses dezoito anos de vida confortável e estável, conforme o padrão do trabalhador brasileiro, foi acometida por um súbito fanatismo religioso, e praticamente internou-se em uma igreja evangélica, e um belo dia deixou um bilhete com pedido de perdão e fugiu - apenas com a roupa do corpo e alguns trocados - com um desocupado, metido a pregador, feio e sem instrução. Reeditou todo o sofrimento do primeiro casamento, passando fome, vivendo de esmolas e submetendo-se a agressões diárias. Quando finalmente livrou-se do covarde companheiro, e arrumou um barraco em uma favela para instalar-se precariamente, foi encontrada por um dos filhos abandonados, que nada questionou, apenas a beijou, a levou para passear, e disse: "agora tenho a quem presentear no Natal!"
Durante a semana, também participei de uma dessas audiências criminais, a que me referi no último post. Como fiz a opção por "trabalhar" e não por me omitir quando exercia plenamente minha função policial, essas audiências persistem até hoje, mesmo estando afastado há algum tempo, me dedicando a projetos muito mais gratificantes e satisfatórios. Pela primeira vez em minha carreira, não me recordava do fato, e apenas aguardei minha vez de dar meu depoimento. Os dois acusados chegaram à vara criminal algemados, usando uniformes do sistema carcerário e escoltados por dois policiais militares e um agente penitenciário. Um deles levantou a cabeça, me olhou com muito ódio e cutucou o colega. A diferença é que o olhar não encontrou reflexo, o sentimento negativo não encontrou reciprocidade de minha parte, como aconteceria antigamente. Meu ex-parceiro, ainda na "febre" do exercício da função, resmungou: "...folgado esse moleque, hein! você lembra do caso". O juíz de direito leu rapidamente os nomes dos acusados, e me perguntou o de praxe: "na data tal, no endereço tal, os indivíduos foram presos por roubo, etc... O que o sr. lembra disso?" Respondi tranquilamente que, infelizmente, não me recordava de nada. Ele então folheou automaticamente as folhas do processo judicial, localizou meu relatório, e disse: "O sr. ratifica esse relatório?" Olhei brevemente as folhas do relatório que fiz há quatro anos atrás, e respondi que sim, assinei meu depoimento, e fui embora. Na lembrança, o olhar de raiva e rancor do acusado, cuja fisionomia eu recordava, mas que o esclarecimento sobre certas coisas, me fez esquecer do ocorrido. Poucas horas depois, uma amiga relata que está atarefada com o nascimento de sete filhotes de seus cães de raça "São Bernardo", de linhagem pura e autêntico pedigree. Diz que vai doar apenas um para uma amiga querida, e vender o restante da ninhada, cujo preço de cada filhote corresponde a R$ 1.800,00 reais. Diante do meu espanto, ela esclarece que todos os dias atende a um bom número de interessados, e que provavelmente venderá os filhotes em uma semana. Explica que quem adquirir o referido cachorro, terá que arcar com o custo do documento que comprova o pedigree, com as vacinas obrigatórias, com as visitas periódicas ao veterinário e com outros mimos caninos. Surpreendo-me e até reajo com rispidez, quando ela revela que a amiga querida a quem ela doará o filhote será a minha esposa, mas depois de minha reação espontâneo e veemente, procuro ponderar. Ouço uma gama de explicações, desde a importância do animal para o crescimento do meu filho; até o fato da oportunidade de obter um cachorro tão caro, sem nenhum custo. Jamais vou compreender e conseguir relacionar estes fatos de forma serena, e não tenho a pretensão de assimilar com tranquilidade as relações humanas.
Pouco antes de escrever essas palavras , recordei-me do menino que me olhou com ódio no tribunal; de como ocorreu a prisão; de como ele estava drogado no dia do roubo; de como ele delatou seu parceiro; de como as manchas de micose adquiridas na cadeia já tinham se espalhado pelo seu corpo; de como ele não deveria estar recebendo atendimento médico no cárcere; de como sua família deveria estar desestruturada; de como a gente julgava estar fazendo justiça... Ouço de longe, minha mulher feliz em conhecer seu "meio-irmão" após vinte anos, com o filhote de "São Bernardo" latindo pela sala, e meu filho Heitor tentando segurá-lo. Um abraço!
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Patrícia Oliveira: Também relembrei nossa estória, e compartilhei dessa emoção. A luta continua, um grande beijo!
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Camila, Carla, Cláudia, Bezão, Mara, Célia: Muito obrigado pelas palavras! Um abraço!
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Márcia: Adorei a sua idéia, sempre tive vontade de falar para alunos da escola pública. Também tenho um projeto para palestras. Se puder me orientar sobre esse projeto para as Delegacias de Ensino, ficarei muito agradecido. Um abraço!
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Nina Flora: Se destacaria sim. É um outro ponto de vista, e o roteiro é muito bom. É sempre gratificante ver filmes de qualidade surgindo no cenário nacional, e nos levando à reflexão. Um abraço!
10 comentários:
Qdo perguntavam para o Nelson Rodrigues de onde ele tirava tanta obscenidade, tanta paranóia, ele dizia: "eu só observo a vida dos vizinhos". É mano, a vida como ela é, mas bem que poderia ser melhor não?!?
Beijos
Djalma sei bem do que vc está falando, onde trabalho essas histórias de vida são corriqueiras,infelizmente nossa sociedade produz isso o tempo todo, pena que não tenho o seu talento para narra-las de forma tão poética. Irmão considere a proposta da Márcia, é mais simples que parece. Coloque uma proposta, justificativa, objetivos, custos e vá à luta nas delegacias de ensino. Não desista irmão, não desista!
Abraços...
Mêu tem uma mina o que trampa comigo que tem uma estória muito parecida com essa, mó sinistro, na real. Vo até falar pra ela ler o teu post.
Valeu!
Mêu tem uma mina o que trampa comigo que tem uma estória muito parecida com essa, mó sinistro, na real. Vo até falar pra ela ler o teu post.
Valeu!
Olá Djalma muito bem escrita sua crônica, mas sinto um grande desânimo em suas palavras. Não deve estar sendo fácil cara. A batalha pra edição do livro, a batalha da espera do processo. Olha porque vc não envia cópia do seu livro para ONGs que tenham afinidade com o tema, muitas têm plenas condições de viabilizar a edição e divulgação. Coragem cara! Fé e força!
Abraços
Olá!
Conheci seu blog através de amigos e agora sou leitora assídua,vc tem grande domínio e sensibilidade com as palavras. Assim que sair seu livro vou comprá-lo.
Boa sorte!
Nossa que novela mexicana...
Nina Flora o méxico é bem mais próximo do que sonha sua vã filosofia pequeno-burguesa querida...
Belo texto, boa sorte!
Djalma meu filho, muitas vezes nesta vida semeamos espinhos pensando semear rosas. E por que isso acontece? Porque são canteiros diferentes e diferentes sementes. Não sinta-se responsável por semeadura alheia, cada qual tem seu campo, seu tempo, sua semente. Siga seu traçado, os espinhos, no mais das vezes, são semeaduras alheias, mal plantadas, mal adubadas, resultando em colheita ruim.
Toda terra pode ser recuperada se usarmos as sementes e adubos corretos, cada qual com o seu.
Deus te abenções!
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