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domingo, 23 de dezembro de 2007

Decreto de Natal!

Róbson, você é um vencedor. Sua trajetória é exemplar, e seus alunos são privilegiados por poder receber educação de um homem com a sua estória de vida. Parabéns!

Fica decretado que, neste Natal, em vez de dar presentes, faremos presentes junto aos famintos, carentes e excluídos. Papai Noel será malhado como Judas e, lacradas as chaminés, abriremos corações e portas à chegada salvífica do menino Jesus.
Por trazer a muitos mais constrangimentos que alegrias, fica decretado que o Natal não mais nos travestirá no que não somos: neste verão escaldante, arrancaremos da árvore de Natal todos os algodões de falsas neves, trocaremos nozes e castanhas por frutas tropicais, renas e trenós por carroças repletas de alimentos não perecíveis e, se algum Papai Noel sobrar por aí, que apareça de bermuda e chinelas.
Fica decretado que cartas de crianças, só as endereçadas ao menino Jesus, como a do Lucas, que escreveu convencido de que Caim e Abel não teriam brigado se dormissem em quartos separados; propôs ao Criador ninguém mais nascer nem morrer e todos nós vivermos para sempre; e, ao ver o presépio, prometeu enviar seu agasalho ao filho desnudo de Maria e José.
Fica decretado que as crianças, em vez de brinquedos e bolas, pedirão bênçãos e graças, abrindo seus corações para destinar aos pobres todo o supérfluo que entulha armários e gavetas. A sobra de um é a necessidade de outro, e quem reparte bens partilha Deus.
Fica decretado que, pelo menos um dia, desligaremos toda a parafernália eletrônica, inclusive o telefone, e, recolhidos à solidão, faremos uma viagem ao interior de nosso espírito, lá onde habita Aquele que, distinto de nós, funda a nossa verdadeira identidade. Entregues à meditação, fecharemos os olhos para ver melhor.
Fica decretado que, despidas de pudores, as famílias farão ao menos um momento de oração, lerão um texto bíblico, agradecendo ao Pai de Amor o dom da vida, as alegrias do ano que finda, e até dores que exacerbam a emoção sem que possa entender com a razão. Finita, a vida é um rio que sabe ter o mar como destino, mas jamais quantas curvas, cachoeiras e pedras haverá de encontrar em seu percurso.
Fica decretado que arrancaremos a espada das mãos de Herodes e nenhuma criança será mais condenada ao trabalho precoce, violentada, surrada ou humilhada. Todas terão direito à ternura e à alegria, à saúde e à escola, ao pão e à paz, ao sonho e à beleza.
Fica decretado que, nos locais de trabalho, as festas de fim de ano terão o dobro de seu custo convertido em cestas básicas a famílias carentes. E será considerado grave pecado abrir uma bebida de valor superior ao salário mensal do empregado que a serve.
Como Deus não tem religião, fica decretado que nenhum fiel considerará a sua mais perfeita que a do outro, nem fará rastejar a sua língua, qual serpente venenosa, nas trilhas da injúria e da perfídia. O menino do presépio veio para todos, indistintivamente, e não há como professar o pai nosso se o pão também não for nosso, mas privilégio da minoria abastada.
Fica decretado que toda dieta se reverterá em benefício do prato vazio de quem tem fome, e que ninguém dará ao outro um presente embrulhado em bajulação ou escusas intenções. O tempo gasto em fazer laços seja muito inferior ao dedicado a dar abraços.
Fica decretado que as mesas de Natal estarão cobertas de afeto e, dispostos a renascer com o Menino, trataremos de sepultar iras e invejas, amarguras e ambições desmedidas, para que o nosso coração seja acolhedor como a manjedoura de Belém.
Fica decretado que, como os Reis Magos, todos daremos um voto de confiança à estrela, para que ela conduza este país a dias melhores. Não buscaremos o nosso próprio interesse, mas o da maioria, sobretudo dos que, à semelhança de José e Maria, foram excluídos da cidade e, como uma família sem terra, obrigados a ocupar um pasto, onde brilhou a esperança.
(Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto).

FELIZ NATAL À TODOS!

domingo, 2 de dezembro de 2007

Atire a primeira pedra!

Célia: ...fico chocada cada vez que tenho notícias de policiais envolvidos com o crime. Tenho consciência que a questão é mais complexa do que parece, mas fico pensando no "senso comum", como ver a polícia com bons olhos? Como acreditar que existem bons policiais, aqueles que cumprem seu papel de verdade?

Célia, cabe a nós - através do debate e da reflexão - pontuarmos os problemas sociais de forma isenta, corajosa e contundente, apontando equívocos e más intenções, desanuviando o cenário obscuro que só interessa a uma pequena e gananciosa parcela que se beneficia disso, para podermos exigir mudanças e correções, que equilibrem um pouco nossa iníqua sociedade. Tudo é reportado, catalogado e narrado de uma forma superficial, que não vai além da epiderme, deixando inerte o corpo social, enquanto as artérias por onde passam as riquezas do país são sugadas avidamente. Um ótimo sinal de que essa estrutura desleal montada para "traduzir" mazelas sociais, que deságua nas notícias dos veículos de comunicação, com suas versões em série para dramas diversos pode ser questionada; é a sua indignação e dúvida quando diz ter ficado chocada com as reportagens sobre policiais envolvidos com crimes. E como esse espaço não se propõe a maquiar, e sim ajudar a desconstruir hipocrisias que mantém a sociedade brasileira nesse vergonhoso estado de estagnação, eis o que posso acrescentar ao debate.
A cultura sob a qual a Polícia Civil se estruturou, é a mesma em que todos os outros órgãos públicos do país se criaram e se estabeleceram, ou seja, do capitalismo imposto como sistema econômico, adaptado e incorporado pela nossa herança como colônia de exploração, redundando numa "filosofia de vida" onde quanto mais você possui e ostenta, mais você é respeitado como cidadão e faz valer os seus direitos. A polícia é o tentáculo da formação do Estado para o qual foi delegado poderes de utilização de força, de contenção, de mais proximidade com os conflitos cotidianos, em todas as camadas sociais. E à Polícia Civil coube a designação de dissimular-se no corpo social, sem protocolos, de forma não ostensiva, para melhor apurar autorias de eventuais delitos contra a legislação penal, no seu papel de "polícia judiciária", conforme sua incumbência oficial. Inicialmente, muito poder foi delegado a essa instituição, que tinha o dever legal de autorizar coisas banais como a instalação de um circo ou parque em uma cidade, ou a emissão de atestado de pobreza a um cidadão, até o extremo da aprovação a um mandado de busca ou prisão. Com o "sacolejar da carruagem" a estrutura estatal foi adaptando-se e os "poderes" foram sendo melhor distribuídos. Fato relevante também, foi o papel a que a polícia civil se prestou, postulando-se ao lado da ditadura, legitimando as ações ilegais dos militares, na época do regime de exceção, herdando inconseqüentemente essa herança macabra. O saldo de tudo isso, resulta no que ficou instituído no imaginário popular: o medo e a figura negativa das instituições policiais, e o quinhão que coube peculiarmente à polícia civil, foi a pecha de desonesta e corrupta. Porém, para discutir o assunto com isenção, esqueça o espetáculo da superexposição de policiais sendo presos, os prejulgamentos televisivos, a necessidade do enquadramento de pessoas no time do bem ou do mal; faça sua própria reflexão. O que deve ser exaustivamente combatido é a "verdade socialmente construída" de que se o indivíduo não tripudiar e "passar seu semelhante para trás", não será reconhecido como cidadão e não usufruirá das benesses a que somente os endinheirados têm acesso. Urge demonstrar que não corrompendo ainda mais nosso meio social é possível reverter recursos para a melhoria de nossas (base da pirâmide) vidas. É imprescindível discutirmos de forma veemente, mas sem hipocrisias (como bradam os que se pretendem "santos canonizados" de calça jeans e eternas camisas brancas), o por que das instituições oficiais e dos nossos representantes serem tão desacreditados pela população, detectando verdadeiramente soluções cotidianas. É explicitar, na prática e sem discursos circulares, que é mais salutar e recompensador optar por não se corromper. É investir maciçamente em informação e cultura para todos nós e "jogarmos o jogo instituído", buscando uma maneira de fiscalizar de muito perto as ações de todos os funcionários públicos (do Presidente da República aos professores do município). Retornando ao caso específico dos policiais sendo presos, mas não perdendo de vista o que foi dito acima, na polícia - como em toda a sociedade - não existem vestais, todos os integrantes sabem "quem é quem", ou quem não resiste ao "canto da sereia". Não pretendendo julgar ninguém, mas mesmo ressaltando sempre que, segundo a Constituição Federal, um indivíduo só será considerado culpado quando transitar em julgado sua sentença penal condenatória, não é difícil constatar ou identificar quem faz mal uso da função pública (...quando nem os sinais exteriores de riqueza são tomados como o início de prova, lembrando Rui Barbosa, chega-se a vergonha da honestidade mantida). Porém, essa constatação nada condiz com o espetáculo pérfido transmitido pela imprensa, e a parte profundamente responsável pela deterioração da "coisa pública" continua escondida, e bem protegida, pelos discursos demagógicos, e pelo meteórico poder aquisitivo conquistado. E a raiz do problema, segue sem sequer ser arranhada. Também é pertinente destacar que ao contrário do que possam sugerir as matérias jornalísticas que apartam e execram o servidor investigado, seja ele culpado ou não, a maioria dos integrantes dessa instituição, desaprovam tais atitudes ilícitas, e - malquerenças e maledicências à parte - conservam um resquício de orgulho em pertencerem ao quadro policial. Os integrantes da carreira policial quase sempre vêm do mesmo extrato social dos delinqüentes catalogados pelo estado, e exercem sua função na contenção desse mesmo extrato social. Nas filas de inscrição para os concursos das carreiras policiais, durante as rodas de conversa, constata-se que os postulantes já carregam um pré conceito negativo do universo ao qual pretendem ingressar. Os que conseguirem a aprovação, trarão seu preconceito da instituição, adicionando ao mesmo o pseudo poder que julgarão portar, "combatendo o crime" inconscientemente apenas no meio social de onde advieram, completando o círculo do erro total, a serviço do poder usurpador de cima para baixo, que manipula e estimula iguais em posições desfavorecidas a agredirem-se reciprocamente.
Concluindo a resposta ao seu questionamento, veja todas as instituições - não só a polícia - da melhor maneira possível: com olhos de cidadã, olhos atentos, e ajude a reverter para o "público", o que interesses escusos usurparam para o "privado". Afinal, a Delegacia de Polícia, os Palácios de Justiça, as Câmaras Legislativas, os Paços do Executivo, os hospitais públicos, os prédios do INSS, as escolas públicas; são seus e de todos nós, e o acesso a esses espaços que a representam na tarefa de tornar nossa convivência social harmônica, são livres, apesar da blindagem corporativista e dos humores instáveis de seus empregados públicos. Quanto aos ocupantes de cargos policiais, esses estão vulneráveis à tentação e capitulação frente ao implacável mundo do consumo e da ostentação; à execração pública da indústria do espetáculo e seus pré
-julgamentos; às armadilhas de exercer sua função lidando diariamente com vilanias e ardis, cabendo a cada um, particularmente, optar pelas escolhas condizentes com sua formação e pretensão social. Um abraço!
Em tempo: às vezes somos ludibriados pela vida e achamos que a dor da morte, da prisão, da separação, são ácidas e agudas. Ledo engano, hoje tenho a dimensão da dilaceração do espírito e da alma. Doem todas as equinas do meu ser, e de alguma maneira, rebaixo-me junto ao meu querido Sport Club Corinthians Paulista, para todas as sub-divisões que a vida nos colocar. Tu és forte, tu és grande, dentre os grande, és o primeiro. Força Corinthians! Todo poderoso Timão!

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mente Criminal

Camila: Parabéns pela iniciativa de ler o livro "Vigiar e Punir", estamos juntos. Um abraço!

Carlos: A respeito da polêmica criada após a veiculação dos artigos do apresentador Luciano Huck (publicado no jornal "Folha de S.P.", o qual foi vítima de roubo no badalado bairro dos Jardins em São Paulo/SP), e do escritor Ferréz (artigo resposta em forma de conto, publicado no mesmo jornal, com o objetivo de explicitar a realidade e mostrar um pouco a outra face dos fatos, e o que origina essa violência), já dei minha opinião no post Tropa de (a) Elite - o que você tem a ver com isso?. Sobre as opiniões publicadas que valem a pena comentar, lamento o artigo bem escrito, mas fora de propósito da excelente Alba Zaluar, a quem respeito muito e admiro todos seus artigos publicados naquele jornal (exceto esse sobre a polêmica); e destaco o ótimo artigo escrito pelo cantor Zeca Baleiro (O rolo do Rolex), que pode ser lido na íntegra no blog "O lado B de Mara", linkado aí ao lado. Obrigado!

Denise: A corrupção no Brasil data dos primórdios da nosso formação como sociedade. Fomos descobertos como uma colônia de exploração, onde se retirava tudo o que tinha valor comercial e enviava para a terra do colonizador. Ao contrário das colônias de povoamento, cujos pioneiros tinham também a intenção de explorar, mas para se estabelecer na terra, aqui desde o princípio instituiu-se essa característica da usurpação do público pelo privado, de se levar vantagem em tudo, de desprezo mútuo entre as instituições oficiais e os cidadãos. A formação do caráter do brasileiro é muito bem aludida na obra "Macunaíma" do autor Mário de Andrade. Porém, corrupção não deve ser compreendida apenas pelas chamadas dos jornais da grande imprensa, divulgando escândalos diários; deve ser estendida para nossas ações, onde devemos verificar se no nosso raio de ação, não tomamos atitudes igualmente vis, travestidas de "esperteza" ou o famigerado e corrosivo "jeitinho brasileiro". A propósito, seria ingenuidade acreditar que em um batalhão policial como o BOPE não exista corrupção, o mesmo é formado por pessoas de momentos de esclarecimento diferentes como todo grupo. O autor do filme "Tropa de Elite" apenas pretendeu enfatizar a diferença entre os grupos policiais, e a motivação justiceira do Capitão Nascimento e do batalhão a que ele pertencia, o qual era menos corrupto em relação a envolvimento com marginais e achaques, mas que degradava intensamente o dever policial com execuções e torturas. No confuso momento em que vivemos, um personagem criminoso vira herói nacional, e a morte é mais tolerada (e até reverenciada), do que um delito de corrupção. Os presídios que abrigam policiais estão repletos de estórias que ajudam a esclarecer esse nó, dando uma indicação onde o problema se inicia, com uma profusão de ex-policiais que participaram da mesma guerra civil que o Capitão Nascimento, de lados diversos, às vezes dos dois lados, em momentos diferentes; aprofundando e explicitando menos superficialmente os problemas sociais e equivocadas avaliações. A seguir reproduzo um dos capítulos do livro que tento publicar, sobre uma das inúmeras figuras que me fizeram refletir sobre nossa sociedade, na traumática vida entre muralhas. Um abraço!

Mente Criminal

Parecia que o termo havia sido criado para descrevê-lo. Todas as outras formas de referi-lo seriam impróprias sem a utilização dessa palavra: oportunista. Observando a definição empregada no dicionário Aurélio para oportunismo, desfaz-se todas as dúvidas e ressalta-se a atitude desse interno que dedicava grande parte do seu tempo ocioso à engendrar novas artimanhas para encurtar o caminho que leva ao sucesso, desde que esse percurso fosse sem muito esforço e paralelo à via legal e mais árdua: ...”acomodação às circunstâncias para se chegar mais facilmente a um resultado”. Sua figura franzina; sempre arrumado, com camisas para dentro da calça; cabelos penteados com minúcia formando um estilo antiquado de corte e sempre ostentando um relógio de marca importada, transitava quase imperceptível pelo pátio de convívio. Tinha facilidade em estabelecer intimidade, bastando encostar em qualquer “banca” e começar a conversar, com sua fala arrastada, intercalando palavras rebuscadas (impropriamente empregadas no diálogo), com gírias (essas ditas com grande propriedade). Fingia ter muita simpatia e apreço pelo interlocutor, e em pouco tempo de bate-papo conseguia ouvir confissões, arrependimentos, segredos ilícitos, desabafos, etc. Era conservador, machista, racista e superficial, o que facilitava sua fácil aceitação nas rodas de conversas, quase sempre sobre futilidades e “teorias” equivocadas. Também era inteligente, mas mal intencionado. Tudo para ele tinha que ser feito da forma ilegal, levando alguma vantagem, ludibriando, induzindo alguém ao erro. Sua cabeça pensava em crime ou ilegalidades todo o tempo, e todo acontecimento - por mais corriqueiro que fosse - era rapidamente traduzido pelo sua índole viciada e convertido em projeto de futuros delitos, o que levou os detentos do P. E. P. C. a chamá-lo pela alcunha de “Mente Criminal”. Sua fama espalhou-se pelo presídio, e quando alguém queria uma opinião segura sobre a possibilidade de algum ardil dar resultado positivo, era logo aconselhado:
- “Pergunte ao ‘Mente’, ele é a pessoa que pode te ajudar...” Se era convidado por um interno para tomar um café na “boqueta”, “Mente Criminal” já divagava sobre a beberagem: “esse café pode ser superfaturado, depois desconta o valor real pago e pega a diferença, mas também dá pra desviar ou misturar com algum produto, tá com um gosto estranho mesmo...”. Ficava atento a todas as conversas, sempre com a intenção de aprender ou de dar algum palpite que lhe valesse alguma vantagem. Aproximou-se do interno mais talentoso, dos poucos que exerciam a atividade de pintura com tinta óleo sobre tela no presídio, ficou amigo e logo começou a “ajudá-lo” a comercializar seus quadros, vendendo-os a conhecidos e familiares por preços muito acima do combinado com o artista; e, posteriormente, ainda cobrava comissão do mesmo pelas vendas. Certa vez, assistíamos ao noticiário sobre o pagamento do seguro obrigatório para vítimas fatais em acidentes de trânsito e “Mente Criminal” logo se interessou pelo assunto, vislumbrando aproveitar-se do momento de dor dos familiares das vítimas, para adquirir as assinaturas necessárias para solicitar o referido seguro, e obviamente, embolsar o dinheiro para ele. Sempre interessava-se pelos crimes imputados aos novos internos incluídos no P. E. P. C., indagando:
- “Qual o B. O. daquele novato, ali?” E quando era informado, partia rapidamente para a abordagem inicial, dizendo: “esse golpe eu ainda não conheço, deixa eu ir lá dar as boas vindas”, e dirigia-se para o encontro com desmedida cordialidade. “Mente Criminal” aproveitou-se do seu drama do encarceramento para comover antigos parceiros e amigos e angariar algumas doações, sempre com sua conversa demagógica, carregada de lugares comuns. Com sua ambição e seu “tino comercial”, vislumbrava lucro até na esdrúxula estrutura da prisão, que constantemente precisava de reparos em coisas básicas como chuveiros, torneiras, manutenção da quadra de esportes, etc. “Mente Criminal” pedia doações a colaboradores externos, os quais - comovidos com as parcas instalações do cárcere e com sua má sorte - colaboravam na medida do possível. Posteriormente, “Mente Criminal” cobrava dos demais internos, rateando o valor do objeto doado, como se o mesmo tivesse sido comprado, apossando-se do dinheiro arrecadado. “Mente Criminal” vinha de uma infância em um bairro pobre e violento, mas detestava pobreza, e não se identificava com suas origens. Era extremamente preconceituoso, e seu principal alvo era o presidente da República. A implicância com "Lula" era demasiada e não justificava-se por divergências políticas ou ideológicas, mas pelo fato de não aceitar um homem de proveniência humilde e sem sofisticações, exercendo um cargo tão expressivo. “Mente criminal” exprimia o pensamento advindo da herança colonial, de verdades socialmente construídas; institucionalizando o “levar vantagem em tudo”, não importando o meio empregado; a valorização do usurpador bem sucedido em detrimento do virtuoso desprovido de bens materiais; e a não aceitação do seu igual em posição de destaque. Não media esforços para enterrar seu passado de dificuldades, e queria “vencer” de qualquer modo, não importando a maneira de conseguir esse intuito. Desejava ser aceito no meio dos “bem nascidos”, os quais sempre o desprezaram, e cujo circulo social “Mente Criminal”, irremediavelmente, só conheceria pela porta dos fundos. Sabia na ponta da língua nomes de grifes de roupas, marcas de carros, e demais segmentos da cultura do consumo inútil, porém, não tinha conhecimento científico de nada, desperdiçando sua destacada inteligência. Não cogitava “vencer” pelo caminho árduo e honrado; e considerava apenas os meios ilícitos - que o acompanharam em toda a sua trajetória profissional - como forma eficaz de atingir o sucesso. Em uma conversa com “Mente Criminal” na quadra de esportes, confidenciava sobre a minha intenção de criar uma Organização Não Governamental (ONG) para discutir e encontrar propostas para, efetivamente, ressocializar detentos do sistema prisional, e não meramente puni-los, como acontece realmente; para impedir que a ausência de políticas de reintegração social de infratores, se revertesse em novos delitos cometidos contra a própria sociedade, através do recrutamento de presos execrados, aliciados por facções criminosas. Falávamos sobre as mazelas e falhas na segregação do delinqüente apenas como vingança pública, e todos os efeitos negativos que se voltariam para a comunidade, e a necessidade de se fazer algo para desmistificar a hipocrisia da reeducação e fugir das “receitas” mirabolantes dos pseudo-especialistas que nunca estiveram do lado de lá da grade. “Mente Criminal” ouvia à tudo atentamente, e concordava sobre o teor do assunto debatido, chegou a oferecer-se para ajudar nesse trabalho, porém, desistiu quando não conseguiu mudar um ponto do projeto: o fato da iniciativa ser “sem fins lucrativos”. Gabava-se de conhecer um esquema criminoso para tudo: concursos públicos; diplomas escolares; aberturas de contas bancárias; sumiços de parte de processos judiciais em varas criminais; aprovação na segunda fase do exame da Ordem dos Advogados do Brasil; financiamentos de veículos com documentos falsos, etc., e despertava em mim uma indignação quase incontida quando relatava esses absurdos. Porém, após áspera interpelação sobre sua consciência e sobre os reflexos devastadores que essas “sacanagens” causariam no seu próprio meio social, “Mente Criminal” desconversava, alegando que se ele não usufruísse dessas irregularidades, outros o fariam. Era totalmente inconseqüente, e o fato de galgar alguma vantagem financeira, que supostamente o elevaria a mais um andar da escala social, justificava para ele qualquer ato espúrio. Reverenciava os mais abastados, principalmente os de famílias tradicionais, que deveriam manter-se endinheirados e inatingíveis, por terem “berço” ou pedigree, como repetia constantemente. Mas, paradoxalmente, admirava os “novos ricos”, os quais haviam conquistado sua riqueza através de espertezas, trapaças e fraudes. Desprezava os honestos e pobres, que segundo seu entendimento não passavam de tolos e fracassados. Esse pensamento norteava as ações de “Mente Criminal”, que - ao contrário de alguns presos do P. E. P. C. - não havia saído de seu estado de consciência, arriscando-se a enveredar por caminhos delituosos, motivado pela ganância. Ele, pontualmente, vivia nesse mundo irregular, por formação de caráter e deturpada visão cultural.
O momento que mais abatia a população carcerária, era quando espalhava-se a notícia da condenação de algum detento que estava “sumariando”, ou seja, respondendo a processo judicial, e que finalmente havia sido comunicado de sua sentença. A fria comunicação de que um preso havia sido condenado a determinados anos de reclusão, caía como uma bomba de melancolia no presídio, e afetava em certa medida todos os internos. A esperança de que o desafortunado fosse absolvido, independente do crime a ele imputado, era coletiva; não por saber-se que o mesmo seria inocente ou culpado, mas pela cumplicidade que se estabelecia com a convivência forçada dos castigados do P. E. P. C., os quais dividiam a carga diária de ódio e indiferença que recebiam da vingativa sociedade. No caso específico de “Mente Criminal”, o que mais me aborrecia não era o iminente desfecho do seu processo judicial, mas o futuro de seu processo de desenvolvimento como ser humano. Aquela penosa segregação, o descaso com que fora tratado pelo mesmo estado que um dia havia lhe contratado, que fora o seu patrão, e que agora o castigava sem nenhum propósito de reabilitação; nada disso tinha lhe servido de aprendizado. O desperdício de sua vida toda dirigida para uma inútil necessidade de aceitação por parte de quem sempre lhe oprimiu. A avidez com que desejava ser acolhido pela aristocracia que o desprezava; a não aceitação de seus iguais, que certamente seriam pessoas melhores que os endinheirados quase sempre sem moral que ele tanto admirava. Nada havia mudado na vida daquele homem comum, que tentava camuflar-se de “bem nascido”, denotando a si próprio um indisfarçável ar de canastrão. O tempo e a inteligência dispensados por “Mente Criminal” para esconder todos os seus traços nordestinos e sua origem humilde, e para arquitetar atos delituosos; se fossem convertidos em algo produtivo para a sua vida, com certeza tornariam seus dias mais dignos e gratificantes. Era doloroso observar que naquele ambiente inútil, cercado de grades por todos os lados, paredes úmidas e arames farpados, “Mente Criminal” - independente da absolvição de seu corpo - condenava sua mente a continuar traçando caminhos equivocados, no anseio de acorrentar seu destino à rabeira do fantasioso universo do consumo, da futilidade e da ostentação. Ironicamente, o homem que orgulhava-se das artimanhas e malandragens que utilizava para mover as peças do jogo da vida, inconscientemente, produzira para si mesmo, um engodo do qual dificilmente conseguiria se livrar; e seguia seus dias, entre ilicitudes, devaneios, ardis e a inseparável armadilha na qual ele mesmo havia se aprisionado, e que certamente o acompanharia, talvez para sempre, quando as grades do P. E. P. C. se abrissem, e ele finalmente pudesse caminhar pela desalinhada calçada da av. Zaki Narchi.

Em tempo: "Interno" era o termo usado pela administração do presídio para referir-se aos presos. "Bancas" eram os locais com geladeiras, fogões e cacarecos agrupados pelos presos para montar cômodos virtuais no pátio do presídio. "P.E.P.C.": (Presídio Especial da Polícia Civil). "Boqueta": local onde eram servidas as refeições no presídio. Até breve.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Foucault, Camila e as entranhas do poder!


Camila, espero que esteja bem, e que tenha conseguido organizar sua rotina de trabalho após o feriado prolongado. Em referência ao livro abordado no filme "Tropa de Elite", do cineasta José Padilha, trata-se da obra do pensador francês Michel Foucault. No filme, o personagem André Matias cursa uma faculdade de Direito na cidade do Rio de Janeiro, e em uma aula de Sociologia, entra para um grupo de estudos para realizar um trabalho sobre Michel Foucault. A obra mais conhecida deste escritor é o clássico "Vigiar e Punir", onde o autor desenvolve um estudo científico sobre legislação penal e os métodos adotados pelos poderes públicos para punir os que praticam alguma modalidade de crime desde os séculos passados, até os tempos modernos. A contracapa do livro já diz: "Cada época criou suas próprias leis penais, utilizando os mais variados métodos de punição, que vão desde a violência física até a aplicação dos princípios humanitários que apostam na recuperação e na reintegração dos delinqüentes na sociedade. É uma obra clássica sobre as prisões e sobre o Direito Penal". Por ser um clássico, esse livro é facilmente encontrado nas bibliotecas públicas, e acho que você ficaria satisfeita em lê-lo, e constataria o que eu faço questão de enfatizar, com muita segurança, pois conheço o equívoco por todos os lados: atualmente atravessamos um momento de retrocesso no direito de punir, o que se reflete negativamente todos os dias na sociedade. Cadeias abarrotadas, cheias de pessoas ociosas, sofrendo a expiação cotidiana da vingança social velada, sem nenhum processo de ressocialização, alimentando a "indústria da punição", perante a omissão e inércia do estado e de todos nós.
À seguir, reproduzirei os diálogos que abordam a obra do pensador francês "Michel Foucault", no filme "Tropa de Elite", e, em seguida, transcrevo alguns trechos do livro "Microfísica do poder" do mesmo autor. Compare os trechos do filme; do livro, e se possível; dos posts deste blog (Carta resposta à professora Carla e Tropa de Elite: o que você tem a ver com isso). Você verificará que o interessante do debate, é que os assuntos convergem e sugerem algumas idéias e posicionamentos, escreverei nos próximos dias minha opinião sobre o que os personagens do filme debatem sobre a obra de "Foucault". Um grande abraço e obrigado pela oportunidade!
Obs.: Os posts foram escritos antes de eu assistir ao filme.

Trechos extraídos do filme:
Personagem André Matias (no grupo de estudos que realiza um trabalho sobre "Foucault" para a disciplina de Sociologia): (...) bom gente, primeiro eu fiz o resumo (...), e depois eu li que, prá "Foucault", o Direito Penal é uma manifestação das relações de poder, tá. E que, na verdade, não há "contrato social" nenhum, entendeu? E que o Estado sempre administra instituições para vigiar e punir os criminosos, entendeu? Como ..... , que era aquela prisão da época, que a gente já tinha estudado. Para "Foucault" a análise histórica dessas instituições revelam como o Estado exerce o poder sobre a sociedade, que é exatamente o que o "Gusmão" (professor) pediu prá gente.

Personagem Maria (aluna em sala de aula, apresentando o trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): (...) bem professor, nós concluímos portanto, que no Brasil a legislação penal, ela funciona como uma rede que articula diversas instituições repressivas do estado, e que infelizmente, no nosso país, hoje a resultante dessa micro-relação de poder que o "Foucault" tanto fala, acabou criando um Estado que protege os ricos, e pune quase que exclusivamente os pobres.
Personagem Gusmão (professor em sala de aula, durante a apresentação de trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): (...) muito bem, acho que a Maria e todo o grupo falaram com clareza como as relações de poder, e não apenas o Estado, moldam instituições perversas. Agora, pra concluir, podíamos fazer uma análise de caso. Quer dizer, um exemplo de uma instituição desse tipo?
Personagem Maria (aluna em sala de aula, apresentando o trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): A polícia!
Personagem Gusmão (professor em sala de aula, durante a apresentação de trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): (...) A polícia! Muito bem! Mas, por que a polícia?
Personagem Edu (aluno em sala de aula, apresentando o trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): (...) Aí, professor. É porque todo mundo aqui sabe que na favela, os tiras chegam batendo mesmo, saca. Eles chegam dando porrada, esculachando geral!
Personagem Gusmão (professor em sala de aula, durante a apresentação de trabalho que o seu grupo de estudos desenvolveu para a disciplina de Sociologia): (...) O Edu tá certo. A polícia age perversamente contra os despossuídos, os bestializados, e aqueles que por sua condição, são compelidos a cometer delitos.
Alunas concordam em parte com o aluno Edu, e acrescentam que a polícia age violentamente também contra a classe média, a classe alta, e relata um caso pessoal de ser abordada pela polícia em uma blitz.
Personagem sem identificação (filho de um Juiz de Direito, em sala de aula, durante a apresentação de trabalho para a disciplina de Sociologia): (...) Professor, meu pai é juiz e ele falou que, lá na baixada, tortura é pouco o que a polícia faz. A polícia entra lá e sai matando todo mundo, tipo chacina da candelária(...)

Trechos extraídos do livro Microfísica do poder (Michel Foucault):
...o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente. Uma coisa não se pode negar às análises genealógicas (procedência, origem) do poder: elas produziram um importante deslocamento com relação à ciência política, que limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária, viu delinear-se claramente uma não sinonímia (palavra com a mesma significação) entre Estado e poder. O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação eficaz. (...) visa é a distinguir as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de regime político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder. O importante é que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante. O importante é que essa relativa independência ou autonomia da periferia com relação ao centro significa que as transformações ao nível capilar, minúsculo, do poder não estão necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado. A razão é que o aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa. O que me parece, inclusive, apontar para uma conseqüência política contida em suas análises, que, evidentemente, não têm apenas como objetivo dissecar, esquadrinhar teoricamente as relações de poder, mas servir como um instrumento de luta, articulado com outros instrumentos, contra essas mesmas relações de poder. É que nem o controle, nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa, é suficiente para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma sociedade. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. Com isso, se quer dizer que é impossível dar conta do poder se ele é caracterizado como um fenômeno que diz fundamentalmente respeito à lei ou à repressão. O que suas análises querem mostrar é que a dominação capitalista não conseguiria se manter se fosse exclusivamente baseada na repressão. Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito do seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos do contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos, aumentar a força econômica e diminuir a força política. É o diagrama de um poder que não atua no exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade capitalista.

Denise: Agradeço pelas palavras carinhosas, quanto a sua pergunta, darei minha opinião no próximo post, e também gostaria de saber o que você acha sobre toda essa repercussão do filme "Tropa de Elite?" Um abraço!

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

102 dias no calabouço (reportagem do "Jornal de Limeira")

Domingo passado, 14/10/2007, foi publicada a matéria abaixo reproduzida, escrita pelo competente jornalista Paulo Corrêa, que conseguiu achar poesia em tema tão ácido.
(Para visualizar a reportagem na íntegra, basta acessar www.jornaldelimeira.com.br e entrar no suplemento jornal de domingo).

102 dias no calabouço
No dia em que o investigador Djalma de Oliveira Júnior obteve o habeas-corpus e se desvencilhou das grades do Presídio Especial da Polícia Civil de São Paulo (exclusivo para policiais civis) após três meses de confinamento, o primeiro ato de celebração à liberdade foi reunir a família e comer uma pizza. Na pizzaria, a massa apetitosa tinha um aspecto suculento de felicidade. Assim que Oliveira provou o primeiro pedaço, porém, o alimento ganhou um poderoso sabor de culpa, desceu pontiagudo e árido pela garganta. Foi assim que o investigador descobriu que, embora estivesse longe do calabouço da Avenida Zaki Narchi, zona norte da Capital - ao qual, segundo ele, foi submetido por ter assinado uma intimação em nome do delegado titular para detenção de um traficante -, a invencível lembrança dos ex-companheiros de cárcere azedaria a noite e toda a sensação de alegria por estar livre seria assombrada por um sentimento de traição à população carcerária.A reação negativa foi um dos pontos de partida para o amadurecimento de uma idéia e um conceito. A idéia foi a de escrever um livro revelando o ponto de vista de um policial sobre o sistema carcerário a partir do seguinte conceito: "por trás de toda anomalia social, esconde-se a culpa coletiva e a parcela de negligência de todos nós".Essa é a tônica da obra "Os execrados da av. Zaki Narchi", um surto de revolta e indignação em 212 páginas. Com a tinta pesada, o autor não mede esforços para mostrar como facções criminosas aliciam policiais dentro do presídio da própria corporação, descreve a ação de oportunistas sobre os detentos, a "indústria da punição" que se tornou um dogma no sistema carcerário, o impacto da detenção sobre as família e as dramáticas histórias de vida de ex-policiais que tinham a função de deter marginais e agora estão presos.A narrativa rica descreve a lenta, sofrível e catártica metamorfose no comportamento dos internos do presídio. Como o caso de um policial de origem oriental que passou as duas primeiras semanas no presídio recebendo advogados e sanando dívidas para não perder o apartamento onde residia com a mãe e a irmã. Após deixar tudo acertado, ele enforcou-se no banheiro da cela. Além de descrever um cenário insólito do funcionamento da "cracolândia", tolerada pelos administradores, atrás de uma igreja evangélica.
Investigador busca editora para lançar livroO policial civil Djalma de Oliveira Júnior conta em seu livro que sentiu na carne como o isolamento - sem qualquer proposta de ressocialização - produz efeitos devastadores sobre a vida do preso. Uma violência que, ele reconhece, só se materializou durante o período de detenção. Um despertar brutal para quem exerceu durante oito anos um papel de investigador de polícia, sendo uma engrenagem do sistema de segurança pública do Estado, dando manutenção à "máquina de punição" atrás de um balcão de delegacia em Barão Geraldo, bairro nobre de Campinas. Não é à toa que, na última frase do livro, o investigador desabafa - após ficar 102 dias preso: "No peito, um vazio. E, na alma, a total incompresão do sentido vida!".A prisão de Oliveira ocorreu no dia 18 de abril do ano passado. Ele só foi libertado no dia 27 de julho após ter conseguido o habeas-corpus. Depois de ser solto, passou boa parte do tempo na casa da irmã, em Limeira, onde trabalhou na construção do livro. Agora, o investigador busca uma editora para publicar o material. Ele segue suspenso das atividades na Polícia Civil enquanto aguarda o parecer final do Tribunal de Justiça sobre seu caso. O julgamento está previsto para ocorrer no próximo mês. O autor disponibilizou parte da obra na Internet. Para ler um trecho do livro, basta acessar o blog www.djalma-oliveira.blogspot.com
Leia um trecho do livro: "Em meio às imprecisões das notícias que chegavam, de fatos inusitados, que davam conta que integrantes de tal grupo criminoso (PPC) estavam cometendo atentados contra policiais, agentes penitenciários e seus familiares, as reações dos presos do P.E.P.C. (presídio) foram das mais diversas.- Eu não sou mais polícia, eu apóio os irmãos de cárcere, viu!Outros desesperados temiam por seus familiares, agora sem a proteção do seu braço armado e à mercê de bandidos. Uns, de sabida interação com a quadrilha em questão, foram alvos de chacota e de pedidos irônicos.- Você que é envolvido, pede para os irmãos não atacarem minha família."
Paulo Corrêa.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Tropa de (a) Elite! O que você tem a ver com isso?

Finalmente assisti ao tão badalado filme "Tropa de Elite", do cineasta José Padilha; baseado no livro "Elite da Tropa", escrito por um ex-policial do BOP da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. Agora entendo porque algumas pessoas que sempre são questionadas sobre violência urbana se recusaram a falar sobre o assunto. O tema é delicado, melindroso; e o filme é realista, "à flor da pele", violento, mas de qualidade. O próprio diretor do filme foi estranhamente tachado de "fascista". A estória é cotidiana, alguns problemas urbanos são abordados na trama, sempre sob a ótica do narrador, um policial militar violento e incorruptível, que realmente acredita naquilo que prega. Concomitantemente ao lançamento do filme, uma polêmica interessante surgiu nas páginas do jornal "Folha de SP", o apresentar Luciano Huck foi vítima de roubo no bairro dos Jardins, na capital paulista, tendo seu relógio de marca "Rolex" subtraído, e publicou um artigo de desabafo sobre a violência que "assola" o país, e a necessidade de prender os bandidos, de se falar em segurança pública e, (suponho que num ato de desespero não justificado), chegou até a evocar o capitão Nascimento (personagem de Wagner Moura no filme "Tropa de Elite"), para "acabar" com a violência nas grandes metrópoles. Alguns dias depois, o escritor Ferréz também publicou artigo na mesma "folha", criticando o discurso unilateral de Huck, e derramando uma enxurrada de realidade suburbana, da classe massacrada pelos consumidores de relógios e preciosidades importadas, posicionando-se do lado oposto ao do apresentador. Para variar, no resumo dos fatos, o discurso hipócrita prevaleceu: as razões do escritor não foram sequer ponderadas; e a pretensão do cineasta descaracterizada. O apresentador Luciano Huck foi reverenciado como o abastado que tem o direito de ser rico, pois conseguiu seu patrimônio com esforço e honestidade, e o máximo que recebeu de crítica foi a alusão ao "riquinho esperneando porque perdeu seu brinquedo". O cineasta José Padilha foi "classificado" como defensor de ideais da direita que justifica as atitudes repressivas e violentas da polícia, e vez por outra foi elogiado pelo bom filme. E o escritor Ferréz, por sua vez, foi linchado publicamente, acusado de ser defensor de bandido, inconseqüente, destruidor do estado de direito. O "patrulhamento", ávido por catalogar cada um no seu devido lugar não tardou, e a tropa da elite bradou em plenos pulmões: rico é rico, pobre é pobre, bandido é bandido, e filme tem que ter final feliz. Muito cômoda é a posição da elite neste país, a qual disseminou um bom número de discursos prontos, chavões, frases de efeito, e deitou em berço esplêndido, olhando de cima o "debate de uma nota só". Voltando ao filme, o mesmo deixa clara a necessidade de discutir a possibilidade da descriminalização das drogas, visto que a erradicação é uma utopia. O tráfico de entorpecentes é um grande negócio, como a comercialização de bebidas alcoólicas e de cigarros. Grandes conglomerados enriquecem vendendo bebidas e cigarros, com publicidade em horário nobre, passando a imagem de substâncias que o ajudam a relaxar após a correria do cotidiano de luta, sempre ao lado de mulheres bonitas e rapazes saudáveis; ocultando os males causados por esse "prazer". A droga é associada ao morro, à favela e ao cortiço, cercada de "magrelos" sem camisa, portando armas pesadas; e seus consumidores às pessoas perturbadas, perdidas, viciadas. Convenhamos, o efeito é o mesmo, o malefício é o mesmo, o dinheiro arrecadado é o mesmo, porém, por tratar-se de coisa ilícita, proibida, a droga alimenta outro micro-cosmo, onde os atravessadores usam de métodos violentos para se estabelecer, mas não menos imorais que os outros. Esse comércio velado deságua em outros males como a indústria da punição, a inutilidade do sistema penitenciário, o preconceito sofrido por moradores dessas áreas de tráfico, etc. No filme, a "guerra retratada" é causada e combatida pela mesma polícia. O traficante ocupa um espaço negligenciado pelo estado, que intervem para se beneficiar do próspero comércio de drogas ou para reprimir e moralizar, mas nunca para suprir as necessidades dos desfavorecidos. Isso foi mostrado pelo diretor do filme, e precisa ser explicitado muito mais, pois existem várias e paradoxais intervenções estatais, e diversas incorreções nessa nossa sociedade multifacetada. Contudo, classificar o cineasta de fascista é no mínimo impróprio. Outro ponto é aplaudir o desabafo do rico indignado que teve um súbito contato com a violência, e execrar o também desabafo do periférico que sente na pele diariamente a violência. Usar da força e da ameaça para tomar um objeto caríssimo, que daria para comprar mais de uma casa na periferia, e sustentar uma família pobre por alguns meses é ilegal; mas usar no braço alguns anos de salário da média de todos os trabalhadores do país é imoral. Para posar de vestal que ajuda os pobres é preciso ter consciência social, não apenas usando uma parcela de seus vultosos lucros para manter uma instituição de "caridade", mas tendo conhecimento do que faz o despossuído se sentir mal, de fora da sociedade de consumo. É não contribuindo para a erotização precoce das crianças dos subúrbios, com suas "Tiazinhas" e "Feiticeiras", que reduzem as mulheres a meros bibelôs sensuais. É não expor os necessitados a situações constrangedoras em troca de alguns trocados, em quadros do seu programa semanal, mantido à custa de polpudos contratos de publicidade. Conheço a obra do escritor Ferréz; do livro infantil Amanhecer Esmeralda ao romance Manual prático do ódio. Acompanho sua luta na idealizada revolução literária. Esporadicamente leio seus artigos publicados em algumas revistas. E nunca o vi prestando um desserviço social, pelo contrário, ouço apenas mais uma voz resistente, altruísta, às vezes equivocada, remando contra a maré, fugindo do recrutamento da elite.
Porém, o essencial de tudo isso, é permitir o debate desinteressado, isento, não obtuso, onde cada indivíduo possa "olhar com olhos livres", e refletir sobre esses temas polêmicos que indiretamente direcionam nossas vidas e interferem no nosso cotidiano, não aceitando o "entendimento pronto" que lhe empurram garganta abaixo. Afinal, para bom entendedor, um risco quer dizer Francisco, ou Luciano, ou Reginaldo, ou Padilha...Em tempo: segundo o dicionário Aurélio: "elite: s.f. O que há de melhor em uma sociedade ou grupo; nata; flor. Minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos. Até breve!


Um apelo: algumas pessoas que não deixam comentários neste blog, têm discutido fora deste espaço, ou dito a outras pessoas que leram os posts. Isso é ótimo, porém, pediria encarecidamente que deixassem qualquer observação, mesmo uma palavra, ou a expressão "eu li". Por mais estranho que pareça, isso é fundamental para balizar essa iniciativa. Obrigado!

Resposta ao " Jão": Ninguém expressa o que não é, ou "paga uma sugestão" só porque teve problema. Quem me conhece e sabe da minha estória não se surpreende com minhas palavras. Viemos todos do mesmo lugar, para onde vamos é que são elas. Vou para o debate, tento publicar meu livro, e assim vou aprendendo um pouco com quem interage nesse espaço. A polícia, a milícia, a quadrilha, são só detalhes. Força e esclarecimento irmão, um abraço!

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Alguns agradecimentos.

Camila, muito obrigado mais uma vez! Suas palavras são sempre muito importantes para mim. O objetivo é esse, o debate se faz urgente.

Professora Márcia, fiquei realmente lisonjeado pelas palavras de incentivo. Seria um imenso prazer poder conversar com seus alunos. Acho que nos ajudaríamos a entender e tentar achar soluções para melhorar essa estrutura hipócrita que não criamos, mas a que estamos submetidos. Meus sinceros agradecimentos!

Marcão, precisamos aparar essas arestas e diminuirmos a mútua aversão entre iguais. Vou assistir ao filme "Tropa de Elite" e depois trocamos idéias a respeito. Só uma dica, quem leu o livro que originou o filme diz que o mesmo é mais completo, e que o filme só aborda parte da obra do autor do livro. Estamos juntos, um abraço.

Nelson, não entendi o que o azucrina. Não sei o que os colegas de trabalho acham do meu trabalho, mas acho que deveriam gostar de qualquer iniciativa que valorize a profissão e incite ao debate sobre injustiças e maneira eficáz de reeducar quem supostamente delinqua. Gostaria muito de saber sua opinião, que certamente têm mais conhecimento da sociedade do que alguns ocupantes de cargos legislativos e judiciários desse país. Obrigado pela visita.

domingo, 30 de setembro de 2007

CARTA RESPOSTA À PROFESSORA CARLA

Há aproximadamente dez dias, numa noite fria destes tempos difíceis, encontrava-me na casa de um amigo, e aproveitei a oportunidade de assistir a um debate na TV fechada (paga), no canal da O.A.B. (Ordem dos advogados do Brasil), onde uma advogada debatia os problemas da repressão policial nas periferias, permeando e comentando trechos do filme (que ainda não vi) "Tropa de Elite". Bastante exaltada, e do alto de uma espantosa empáfia, talvez justificada pelo conhecimento que ela julgasse ser detentora, bradava com naturalidade as ações repressivas da polícia em áreas de extrema pobreza, sempre apoiada numa definição que repetia reiteradamente para agregar legalidade a tais atos: ..."a polícia é um órgão público de contenção social." Da baixeza do meu parco conhecimento, me senti extremamente incomodado com tal definição. Do prisma do conhecimento científico, catalogado, positivado, esse termo até que se justifica, e de tanto ouvir frases prontas e chavões o ouvido até que se acostuma. Mas, se nos concentrarmos um pouquinho, pararmos a correria diária pela sobrevivência por uns segundos, e nos atermos para o significado real da declaração, a mesma soa ofensiva para quem está do lado de baixo (base) da pirâmide social – não aquela que desenhávamos e interpretávamos nas aulas de geografia ou E. P. B. (Estudos dos Problemas Brasileiros) para os mais antigos – e sim a base achatada, oprimida e inerte dos brasileiros que trabalham apenas para comer! Conter quem? Por que? E, para quem se beneficiar? É aí que começa a nó da questão, professora. Um dos princípios mais importantes da ciência do Direito diz que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, ficando o dever de provar para quem acusa. Hipocrisias à parte, para o policial e para boa parte da sociedade, este princípio se inverteu. Todo morador de áreas críticas, de extrema pobreza, é visto como potencial delinqüente, não raro, ouve-se comentários depreciativos ao povo que reside em morros, cortiços e favelas; nesses agrupamentos sub-normais "todo mundo é culpado, desde que se prove o contrário". O morador de periferia é induzido a manter diariamente uma conduta irrepreensível, e qualquer deslize, é potencializado pelo preconceito ou pré-julgamento.
Vivemos num momento cultural onde cada indivíduo vale o que consome, e o Estado Providência (que deveria assistir o menos favorecido), ao menos cumprindo as obrigações constitucionais (quando elenca os direitos sociais à educação; saúde; trabalho; moradia; lazer; segurança; previdência social; etc, como sua responsabilidade), é relegado em detrimento do Estado Policial e repressivo. Posto isto, chega-se facilmente à conclusão de que a tal "contenção" social, diz respeito a um órgão público (que deveria atender à maioria), a serviço de uma minoria abastada, que teme pela revolta, rebeldia e violência de uma massa que não têm nada a perder. Se visitarem as cadeias (espaço físico destinado meramente a tirar do convívio social indivíduos que delinqüiram), constatarão que lá a população carcerária é constituída, em sua quase totalidade, por gente oriunda destas áreas de extrema pobreza. Parafraseando aquele provérbio antigo: "ao suburbano não basta ser honesto e passivo, deve parecer honesto e passivo." Apesar de bombardeado diuturnamente por uma ávida e feroz indústria do consumo, através de todas as mídias, e saber que jamais poderá usufruir daquilo que lhe escancaram, deve permanecer dócil, e conformar-se com sua condição inferior, sempre contido por quem é pago indiretamente pelo seu imposto cobrado obrigatoriamente (conforme pesquisas publicadas esporadicamente, quem paga mais impostos e tributos no Brasil, são as pessoas menos favorecidas). A mídia e os órgãos oficiais, estrategicamente, tratam de rotular todo o povo pobre de alguma maneira peculiar, seja pela classe social, pela cor da pele, pelas preferências artísticas, pela localização geográfica, etc., como uma tribo problemática e sem anseios, porém, como definiu sabiamente o rapper Mano Brown: "cada favelado é um universo em crise", e cabe a polícia "conter" e monitorar essa crise, daí o erro total de agressão mútua entre iguais (policiais e pessoas oriundas da mesma classe social), para benefício e regozijo de quem assiste a tudo lá do alto, formulando teorias mirabolantes e vomitando uma profusão de falácias. Certa vez, um adolescente infrator acusado de cometer um pequeno delito era abordado por mim, e aproveitava para desabafar enquanto era averiguado, tecendo o seguinte comentário: "seu Djalma, o senhor eu respeito que venha me abordar e me investigar, o senhor usa sapato e me respeita, mas seu parceiro vem querer me prender usando Nike doze bolhas, aí é falta de respeito, quer me prender e é igual eu, tá tirando a favela..." Só entenderá essa passagem, quem conhecer profundamente a sociedade, e o que os dessasistidos esperam dela. "Só quem sabe onde é Luanda saberá me dar valor", um abraço afetuoso!

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Polaco

Obrigado pelas palavras de incentivo, mas o caminho é árduo, e o assunto é árido. Cada vez mais descrente das boas intenções humanas, prossigo " postando" minha experiência, mesmo que tenha que reproduzir todo o conteúdo do livro neste espaço. Quanto ao questionamento da professora Carla - do ensino médio da rede pública - creio que posso ajudá-la a compreender esse nó a que você se refere, responderei mais especificamente no próximo post. Amigo Luciano, gostaria muito de conhecer o trabalho de sua ONG, todo o trabalho nesta área ainda não é suficiente para corrigir este equívoco histórico chamado sistema carcerário. Um grande abraço a todos! E, como mesmo alheia a nossa vontade a vida continua, lá vai o terceiro capítulo do livro, que se refere à uma figura ímpar, que é citado também em outros capítulos do livro: Polaco.


POLACO
Desperto por volta de 07:00h e continuo na cama aguardando que algo se manifeste, porém, tudo permanece inerte. Após aproximadamente uma hora resolvo levantar, escovo os dentes e desço até o pátio, onde está sendo realizada a faxina da parte térrea do presídio, obrigação dos recém-chegados. Avisto apenas um pequeno grupo de pessoas e descubro mais tarde que dormir o máximo suportável, às vezes quase o dia todo, era uma das maneiras encontradas pelos presos para que o tempo passasse, pois não existia quase nada com o que se ocupar naquela clausura. Entre o grupo de internos (termo usado pela administração) está “Polaco", caucasiano aparentando 50 anos; alto; forte; cabelos claros, que sempre era o primeiro a acordar e a descer para o convívio, me aproximo e ouço as primeiras estórias e algumas instruções. Relato o meu infortúnio pela primeira, das dezenas de vezes que terei de repeti-lo nos primeiros dias. De certa forma, ouvir a desdita dos outros era uma maneira dos detentos se relacionarem com o mundo de fora. Através da estória de quem chegava, informavam-se de como as coisas estavam ocorrendo no mundo exterior, e, de forma macabra, sentiam-se bem interiormente com a desgraça alheia, não propositadamente, mas como um meio de evoluírem no mundo ao qual agora pertenciam, como uma escala fúnebre, onde alguém era incluído e teria que passar por todas as agruras que o preso mais antigo já passara: era a escala evolutiva da cadeia! De algum modo, a desgraça do próximo redimia sua vida penitente, ao menos no subconsciente do recluso, por mais que o detento antigo fosse solidário e auxiliasse o novato no cumprimento de sua pena. Alguns internos se solidarizavam, e outros, os “asas negras”, já previam o pior; contavam suas mazelas; o desprezo do poder judiciário para com os presos; os abusos e as injustiças cometidas; e praticamente condenavam sumariamente. Sabiamente, “Polaco” interrompe a conversa, dando o primeiro conselho que valha à pena ouvir:
- “aqui, cada um deve cuidar da sua vida, não falar sobre o processo e tentar abstrair o mundo lá fora. O que mais você vai encontrar entre os presos é Juiz de Direito, Promotor de Justiça e Desembargador”, dizia ironicamente. Aos poucos, viria a confirmar a razão dessas palavras, o assunto preferencial entre os detentos era sobre o processo judicial. Faziam projeções; comparavam casos parecidos; consultavam códigos, acórdãos, sentenças, súmulas, jurisprudências e tudo que pudesse ser relacionado; descreviam perfis, hábitos profissionais e pessoais de promotores, juízes, desembargadores e ministros; adivinhavam sentenças e contavam estórias (a maioria com finais tristes, de injustiças e maus julgamentos). Ao mesmo tempo em que lamentavam o destino dos subjugados, riam dos infortúnios, faziam chacotas onde deveriam indignar-se. Quase todos os internos tinham uma cópia do seu processo entre os pertences, um amontoado de folhas brancas, as quais de vez em quando folheavam exaustivamente. Particularmente, não fui contagiado por esse mal, o que me ajudou a ter menos dias de total revolta e sentimento de impotência frente à frieza das letras impressas no papel, que invariavelmente, diminuíam as chances de defesa do acusado.
“Polaco” era referência em todo o presídio, de uma inacreditável onipresença, aproximava-se sempre sorrateiramente das rodas de conversas, como se conhecesse todos os atalhos do P. E. P. C., e com a autoridade de doze anos de reclusão, interferia em quase todos os assuntos, desmistificando supostos feitos; acrescentando detalhes importantes às estórias ou desmoralizando o “bandidão da hora”, dizendo:
- “pára com isso rapaz, você é um ‘cú’, não mata nem barata!”, disparando com o sarcasmo e o bom humor que lhe eram peculiares. De todos os condenados com quem convivi no P. E. P. C., “Polaco” era o que melhor resistia a tantos anos de inatividade social naquele inútil depósito de seres humanos. Era impossível não alterar o humor, a personalidade e alguns dos seus princípios em situação similar, porém, em raros momentos “Polaco” deixava transparecer sua mágoa com o destino, ou arrependimento - só ficava evidente quando falava de sua mãe e do rumo diferente que sua vida poderia ter tomado se tivesse se dedicado à engenharia (ingressou quando jovem em uma faculdade no Paraná) e não ter se tornado policial civil em São Paulo. Mas, esse momento de introspecção durava pouco, e logo já emendava outra das centenas de estórias que presenciou ao longo da carreira e do período no cárcere. No P. E. P. C. existia um acordo velado que funcionava relativamente bem, o Estado não investia em nada além da alimentação, água e energia elétrica, sendo que todas as benfeitorias e necessidades do preso ficavam por conta dos detentos, que captavam - através do conhecimento pessoal e do prestígio que gozavam quando em liberdade - recursos para a sobrevivência de todos. Em contrapartida, a gestão de fato do presídio, também ficava por conta dos próprios internos, com a intervenção da administração apenas para conter os abusos. "Polaco" (ao lado de um investigador conhecido como "Fininho", que permaneceu longo período encarcerado no P. E. P. C. - e que havia sido libertado pouco mais de um ano antes de minha inclusão - acusado de ter participado do "Esquadrão da Morte" e de ter pertencido à equipe do famoso delegado "Sérgio Paranhos Fleury"), era o policial civil mais conhecido em todo o estado de São Paulo, e havia se tornado o melhor relações-públicas do presídio, demonstrando uma incrível habilidade para amealhar doações para os internos e para o precário funcionamento do lugar. Isso, porém, dividia a opinião da população carcerária, em parte que achava esse ato uma atitude louvável, e parte que não poupava adjetivos negativos para referir-se à sua pessoa, o acusando de aproveitar-se do efeito altruísta que a visão do "purgatório da av. Zaki Narchi" exercia nos ex-colegas de trabalho, os quais contribuíam com o que podiam, por temer destino semelhante ao do pedidor. Dono de um passado de causar espanto nas biografias mais conturbadas, intensas e delituosas do país, e remanescente das piores fases do P. E. P. C., quando os internos mais temeram por sua integridade (inclusive tendo passado curtos e esporádicos períodos no inoperante C. O. C. – Centro de Observação Criminológica – tendo contato com as figuras mais obscurecidas do mundo do crime, como "Pedrinho Matador" e "Pernambuco"), “Polaco” afirmava ter se encontrado no Espiritismo, cujas reuniões organizava as segundas e quintas-feiras na biblioteca improvisada do presídio. De vasta leitura espírita, “Polaco” arriscava-se a confortar e aconselhar internos que estivessem passando pelas inevitáveis crises que o enclausuramento provoca. Contrariando o efeito que o estabelecimento penitenciário incuti no preso, de comprometer gradativamente sua lucidez e sociabilidade - já que o detento não se afina mais com as instituições as quais pertencia ou acreditava quando em liberdade - “Polaco” era avesso ao comportamento de alguns internos que passavam a ter atitudes de desleixo com a aparência pessoal e higiene, ou passavam a comunicar-se através de gírias, denominando objetos com termos adotados por presos comuns, tais como “jéga” ao invés de cama; “boi” no lugar de banheiro ou “bandeco” para referir-se à marmita de alumínio. Quando presenciava tal comportamento, “Polaco” exaltava-se, dizendo:
- “Amigo, aqui é um ambiente familiar, se você quiser viver como preso, te arrumo uma transferência para Tremembé”, em alusão ao presídio comum, destino dos internos do P. E. P. C. que cometessem alguma grave indisciplina. Apesar de ser excessivamente inconveniente às vezes, com brincadeiras que simulavam agressões físicas ou de cunho sexual, “Polaco” tornou-se figura imprescindível à harmonia necessária ao ambiente do presídio, dirimindo conflitos - mesmo os provocados pelos internos que optaram em cumprir suas penas através de uma constante viagem etílica, embriagando-se com o álcool comercializado clandestinamente - e deixará uma lacuna insubstituível naquela ante-sala do inferno, quando merecidamente for libertado. Por vezes, tentei imaginar aquele calabouço sem a presença de “Polaco”, e as previsões não foram das melhores. O ócio permanente do local permitia longos momentos de silêncio, quando algum assunto esgotava-se. Silêncio interrompido bruscamente por “Polaco”, que fitava seus olhos magneticamente azuis nos olhos do interlocutor e repetia uma expressão muito utilizada pelos detentos para descrever a intensidade do problema alheio:
- “...que piça, hein amigo!” Dizia, já saindo, caminhando rapidamente para um afazer qualquer, fugindo do perigo da depressão.
Há mais de vinte anos, um governador do estado disse a um grupo de Investigadores de Polícia que se manifestavam por meio de uma grande passeata, reivindicando melhores salários:
- “vocês têm carteira, arma e distintivo, pra que estão querendo aumento de salário?” Para bom entendedor, fica clara a cultura que se incutiu em uma parcela do efetivo policial civil. Em algumas ocasiões, um pequeno grupo de internos que assumidamente “estavam na correria”, para usar uma expressão adotada pelos próprios indivíduos, se reunia no pátio do presídio e confabulava sobre crimes, grandes golpes e formas das mais criativas para se ganhar dinheiro ilicitamente. “Polaco” aproximava-se como de costume, ouvia atentamente as conjeturas, depois despistava:
- “deixa eu sair daqui, porque aqui só tem bandido de verdade”; ironizava o grupo, e se afastava. Porém, quem ouvia suas estórias, sabia da sua capacidade de articulação, raciocínio rápido, persuasão e liderança. Uma mente capaz de comentar com lucidez qualquer fato novo, e deliberar acertadamente sobre qualquer assunto, com destacado e profundo conhecimento sobre a sociedade; das atitudes e pensamentos mais nobres, às obscuridades e oportunismos mais rasteiros. Uma grande capacidade intuitiva, adquirida à custa da convivência em um mundo profissional repleto de ardis, vilanias e más intenções. Um indivíduo que, independente de eventuais delitos que tenha cometido, deveria estar sendo aproveitado, e contribuindo de alguma forma para o desenvolvimento social. Trancado há doze anos no sistema penitenciário, sendo apenas um ônus para o estado, sem nunca ter sofrido nenhuma tentativa efetiva de ressocialização, demonstrava que era realmente muito difícil tentar entender a máquina estatal, e o que pretendiam os que criaram esse mecanismo inútil e oneroso de mera punição ao corpo e à mente do condenado.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Comentários e agradecimentos!

Descupem-me pela demora em responder aos comentários, afinal, o debate é a intenção a que esse espaço se propõe. Houveram contratempos que não me permitiram ser pontual nas respostas. No futuro, isso ocorrerá de forma mais precisa. Os cumprimentos, as indignações, a curiosidade, as ponderações, me deixaram satisfeito e com a sensação de ter atingido meu objetivo inicial, obrigado!



Mara: obrigado pelas palavras carinhosas, muito pertinente recordar seus comentários sobre o "socialmente construído" e da expressão referida pelo Oswald de Andrade: "ver com olhos livres..."



Juliana: agradeço o carinho e não esqueci nosso projeto do documentário, aliás, não quero te apressar, mas: aquele roteiro está adiantado? Seu profundo conhecimenbto de literatura me encanta, sua aula sobre "Macunaíma" foi impressionante!


Cláudia Silva: Obrigado pelo apoio, segui o seu conselho e iniciei esse espaço. Suas sugestões e abnegadas iniciativas para me ajudar a publicar o livro são imprescindíveis. Espero poder continuar contando com sua visita a esse modesto fórum de debates.


Fábio Shiraga: Reflitamos juntos, e que se estabeleça o debate! Obrigado pelo apoio. Meu filho está bem sim, com muita saúde, e é claro que me recordo daquele churrasco num domingo de sol, na sua agradável companhia. Quando perceber que estiver sol e se tratar de um domingo, me procure para a gente repetir a dose, ou as doses... Um abraço!



Roberto Barbato Junior: Obrigado pela análise completa desse projeto. Suas observações foram providenciais. Espero poder contar com sua experiência e conhecimento do assunto, baseados na sua concreta formação acadêmica, para me manter nos trilhos desse incipiente e pretensioso espaço.



Márcia: Obrigado pelo comentário, e bem vinda a este lado da estória. Depois de cento e dois recluso naquele calabouço um habeas corpus foi julgado no Tribunal de Justiça (2a. instância), e um desembargador determinou minha soltura, alegando que a prisão havia sido arbitrária, porém, continuo respondendo a um processo judicial aguardando sentença. O juiz que me julgará jamais me dirigiu a palavra me questionando sobre o ocorrido. Fui ouvido rapidamente em um tribunal da cidade de São Paulo, em um início de feriado prolongado, por uma juiza que aparentava total desinteresse pelo meu caso, através de um expediente chamado carta precatória. Relato isso em um dos capítulos do meu livro, espero que eu consiga publicá-lo, e que você tenha a oportunidade de lê-lo. Existem momentos da vida em que as coisas acontecem alheias ao nosso entendimento, porém, sinto-me com uma oportunidade única de expressar minha indignação e procurar soluções para essas vicissitudes que só atingem os menos favorecidos, conto com você!


Jorge: Você pensava que a "vida loca" só tinha uma face? Todos nós que estamos "correndo atrás" estamos sujeitos às injustiças. Já vi esse filme dos dois lados e estou à disposição para a reflexão, e se puder ajudar, estou sempre apto ao debate, que é a melhor maneira de atingirmos esse objetivo. Quando você se refere a "raça do caralho", citada na música "homem na estrada" do grupo Racionais MC´s, não tiro sua razão naquele contexto, e nem generalizo, porém, depois do que vi nesse profundo contato com várias facetas do mundo criminal e da indústria do crime, te digo que todos nós podemos ser uma "raça do caralho" de meros vingadores inconsequentes. E por falar em Racionais MC´s, no meu livro cito uma frase do brown no final de um capítulo:..."você sabe o que é frustração? É máquina de fazer vilão". Muito obrigado, e vamos ao debate, vai na fé também irmão!


Camila: Um abraço para você também, Camila! Muito obrigado pelo carinho. Estou afastado do meu trabalho enquanto durar o processo judicial. É um procedimento administrativo que não adianta contestar. O salário é cortado à metade, e você passa a ser visto como um pária, além de ter de pagar advogado. É injusto, mas não é ilegal. O que importa é que enxergo tudo isso como uma oportunidade de fazer a minha parte, compartilhando essa experiência e discutindo esse tema tão sério. A mácula e o constrangimento são para sempre, mas basta canalizar isso tudo em força para prosseguir. Mais uma vez muito obrigado!


Júlio Marcondes: Julio será um grande prazer contar com você para discutirmos nesse espaço, suas referências são as melhores. A Mara e o Ivam te têm em grande conta. Obrigado pelas palavras de incentivo, um abraço!


Edna: Obrigado pela visita, faz tempo sim. O presídio existe há aproximadamente 34 anos, e encontra-se meio dissimulado entre a penitenciária feminina da capital e penitenciária do estado, no complexo do Carandirú.

Dinho: Não apagarei seu comentário, ficará sempre onde está, apesar de ofensivo. Essa sua atitude o ratifica como combustível da indústria da punição que dá lucro para muita gente, menos para você. Espero que um dia você se conscientize e venha para o debate produtivo, justamente para mudar essa realidade que você sabe que existe. Coragem irmão, atirar para qualquer lado é muito fácil. Mostra a cara "Mister M"!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

A inclusão


Para melhor ilustrar a problemática do assunto sugerido para debate na primeira postagem, transcrevo - texto editado e resumido - mais um capítulo do livro que tento publicar (Os execrados da av...), com o intuito de fazer sentir-se (mesmo em pequena medida) o significado e a necessidade de discutir-se esse modo obtuso de perceber a justiça.
Quando a viatura policial ganha a avenida Zaki Narchi, avisto o casarão velho e mal conservado de iluminação deficiente. 18 de abril de 2.006, o dia da minha injusta prisão, o dia em que algo em mim se perdeu. Encravado na confluência das avenidas Gal. Ataliba Leonel e Zaki Narchi, no bairro de Santana, na Zona Norte da cidade de São Paulo, existe uma construção obscura, com seus muros irregulares; calçadas mal conservadas; arames assimétricos e janelas residenciais gradeadas, formando em um cone obtuso, de arquitetura confusa e aparência repugnante, com suas paredes lúgubres espremidas entre prédios comerciais e as tradicionais e gigantescas Penitenciária Feminina da Capital e Penitenciária do Estado, uma edificação que passa quase despercebida, dissimulada entre o trânsito intenso da região e o grande fluxo de passantes, os quais - acostumados com a intensidade da movimentação urbana, com a profusão de estilos e com a poluição visual de uma das mais cosmopolita de todas as cidades do mundo - ignoram o que se passa no interior daqueles muros, que escondem uma das mais fascinantes micro-células da sociedade brasileira: O Presídio Especial da Polícia Civil. As grades nas janelas exercem inevitável magnetismo para os olhos de quem por ali passa e fita o P. E. P. C., despertando a curiosidade invariável que o cárcere representa no imaginário das pessoas, porém, elas vêm ali apenas mais um estabelecimento prisional, ou outra cadeia comum, que aos olhos desavisados nada têm de especial. Essa relativa discrição deve-se talvez à falta de imponência da construção, ou à evidente publicidade negativa que o órgão representa para o governo do estado, que parece esforçar-se para deixá-lo com esse aspecto de prédio abandonado, de prisão dissimulada, de importância secundária, que não chame a atenção para essa extravagância jurídica que beira a inverossimilhança. Presídio destinado a segregar policiais civis (detidos provisoriamente ou cumprindo condenação penal), o P. E. P. C. difere de todos os outros estabelecimentos prisionais do estado, sendo o único (...), vigiado e administrado por policiais civis da mesma carreira, funcionando com regulamento próprio e normas internas peculiares (ressalte-se que o presídio “Romão Gomes”, que destina-se a encarcerar policiais militares, segue a mesma inflexibilidade dos demais presídios do estado de São Paulo), o que o torna um segmento ímpar da história carcerária brasileira. O P. E. P. C. está subordinado à Corregedoria da Polícia Civil Paulista (ele foi criado através de uma resolução SSP/33 de 5 de novembro de 1.974) e segue a mesma formação cultural do seu órgão criador, a qual baseia-se num paradoxo entre a improvisação e informalidade e a rigidez dos seus ritos de polícia judiciária, avalizando um dito freqüente repetido reservadamente pelos funcionários desta instituição “aqui o provisório dura para sempre...”, resultando numa estrutura única, palco de estórias fantásticas, com personagens quase surreais, dessa acomodação provisória que já dura 32 anos. A Polícia Civil do estado de São Paulo apresenta um modo particular na sua estruturação, formação e prestação de serviços. As carreiras policiais civis diferem de todas as outras do funcionalismo público do estado, principalmente por seu modo de atuar, conduzir seus serviços e no seu ambiente de trabalho. No balcão de uma Delegacia de Polícia são depositadas diariamente doses elevadas de emoção e paixão, num turbilhão de acontecimentos que clamam por raciocínios rápidos, deliberações urgentes e pré-julgamentos. Diante desse quadro, seus funcionários envolvem-se cotidianamente com todas as camadas sociais, todos os níveis de humores e, invariavelmente, problemas de toda natureza. Apesar das condições adversas de trabalho, da má remuneração e do desprestígio com que a profissão é vista atualmente, exercê-la é motivo de orgulho para as pessoas que a compõe, as quais sentem no trabalho uma extensão de sua vida pessoal, trabalho este que - não obstante o resultado satisfatório de seus serviços - executam de forma quase mambembe, improvisada, contrastando com o excesso de protocolo da Polícia Militar do mesmo estado, redundando em uma cultura profissional confusa, com atitudes que às vezes excedem a volúpia em elucidar dramas sociais, ultrapassando a linha tênue que a separa do abuso de autoridade e da usurpação da competência do julgamento. Na esteira dessa singularidade da carreira policial civil paulista destaca-se seu correspondente no sistema penitenciário da mesma unidade federativa: o P. E. P. C.
Em São Paulo garoa intermitentemente em uma madrugada fria, que combina perfeitamente com o ar funesto do local e com o meu estado de espírito. Adentro o presídio, transpasso o portão de entrada conduzido por policiais da Corregedoria, sem algemas, carregando minha própria bagagem, uma bolsa com roupas e objetos pessoais. Sou apresentado aos policiais de plantão que me tratam com respeito - talvez por pertencerem à mesma carreira e sentirem-se constrangidos. Não revistam meus pertences, apenas perguntam se há somente roupas na bolsa, nitidamente mais preocupados com a burocracia dos papéis referentes à minha inclusão. È indescritível a sensação de ser classificado em uma cadeia. É como não ter mais identidade, tudo o que sua figura representava perde o significado, como se sua cidadania tivesse expirado o prazo de validade, você passa a ser algo que não deu certo e precisa ser escondido do convívio público, a humilhação é quase insuportável! Prisão preventiva, instituto muito criticado por parcela considerável de estudiosos da ciência do direito, visto que suprime a liberdade antes mesmo do julgamento, causando ao eventualmente inocente a desmoralização e a depressão aos seus sentimentos de dignidade. Segregar preventivamente, antecipadamente, como se eu pretendesse me tornar um foragido, sendo funcionário público, ocupando cargo de confiança (chefia), e tendo bons antecedentes. Como se eu pudesse ameaçar alguém, colocar em risco a ordem pública, e, principalmente, sem suporem que eu pudesse ser inocente e merecesse me defender em liberdade. Ignoram que a prisão em regime fechado é um mal irreparável para o espírito, para a vida social e para a família! Penso no meu passado de ideais de esquerda; na minha formação familiar e na minha dedicação à profissão, e sou invadido por um invencível sentimento de revolta. Mudam radicalmente a vida de um cidadão, com uma enxurrada de papéis frios, num alucinante processo Kafkaniano, e o destacam do seu meio, para, posteriormente, averiguarem a veracidade da denúncia. Sinto um turbilhão de indignações, que de certa forma me exauri e me prostra. Percebo minha defesa reduzida para satisfazer egos de altos funcionários públicos (juízes, promotores de justiça e delegados de polícia), contudo, tenho que alojar essa indignação em algum canto do meu ser, pois, dali para frente estou sob a custódia do estado, deixo de existir por um período e passo a pertencer a uma instituição carcerária. Deixo para trás (...). Passo a primeira grade de ferro e estou formalmente incluído no sistema penitenciário. Agora tenho que testar meu poder de mimetismo e me misturar àquela triste realidade, procurando me manter lúcido, me manter vivo, dentro daquela inexplicável ilha de desesperança. Sou direcionado a uma escada que dá acesso às celas do pavilhão, onde dois internos estão sentados e fumam despretensiosamente. Noto se aproximando a silhueta de um interno, cuja figura confunde-se com a própria história daquele estabelecimento, o indivíduo conhecido como “Polaco” - espécie de gerente do local - que, com seu prestígio entre os detentos e um certo trânsito na administração, mantém a paz na medida do possível e das regras do cárcere. (...). O pavilhão dos quartos/celas é dividido em dois andares, cada andar subdividido em três alas, e cada ala possui duas celas e um banheiro. As portas das celas são de madeiras (residenciais), o que denota ao local aspecto de quarto, mas, imediatamente após transpô-las, depara-se com as impactantes grades que segregam os detentos das demais instalações do presídio. As alas são separadas pelas referidas grades, que são trancadas as 22:00h, após a contagem dos presos, e reabertas as 08:00h. Em cada quarto/cela de 4x3 metros existem três beliches de ferro e um armário de madeira, os quais são divididos respeitando o quesito antiguidade na cadeia, porém, às vezes, o poder econômico fala mais alto e os espaços são comercializados. As janelas são de madeira (residenciais), com grades de ferro, e cada centímetro do lugar é disputado e reclamado por alguém. Há ainda o “Cingapura”, quarto no andar térreo com aproximadamente oito beliches apinhados e um banheiro coletivo, o pior ambiente do presídio; só mais habitável que o “Cinguinha”; um quarto também no andar térreo, sem janelas, com paredes revestidas com azulejo, um banheiro sem porta e alguns beliches de madeira; provavelmente uma cozinha desativada adaptada para abrigar o excesso de detentos. Segundo os presos mais antigos o ambiente no presídio está um “paraíso”, com aproximadamente oitenta detentos, com cama para todos. Relatam que a população carcerária já chegou a cento e cinqüenta homens convivendo no mesmo espaço, e quem chegava dormia no “sarcófago” (espaço no chão embaixo dos beliches) e muitas vezes, por falta desse espaço alternativo, na “praia” (espaço livre no chão entre as camas). Adentro o quarto/cela, avisto os beliches brancos de ferro, a janela de madeira pintada de branco e o armário de madeira também pintado na cor branca, porém, muito longe de significar a paz que a cor normalmente representa. Escalo a parte superior do beliche mais próximo à janela - com todo o cuidado para não incomodar os demais internos - e me deito com roupa e tudo, tendo nos bolsos um rosário que ganhei de minha irmã e um porta funcional/distintivo vazio, o qual carrego instintivamente.
Passo a madrugada em claro, tentando relaxar o corpo, mas fico remoendo pensamentos, sentindo o metabolismo acelerado. Ao amanhecer, inesperadamente, sinto uma paz interior, vislumbro em pensamento o sorriso do meu filho (...), de apenas cinqüenta e oito dias de vida; a beleza lépida de minha mulher Patrícia e o futuro reencontro com minha família. Lembro dos meus filhos (...), e adormeço... Passo o final da madrugada numa espécie de transe, entre pensamentos, lembranças e o barulho constante da movimentada avenida Zacki Nark.


P.S.: Agradeço muito aos comentários deixados nesse blog, e mesmo os comentários enviados diretamente para o meu e-mail. Obrigado pelas palavras de incentivo, pelo apoio e pelas sugestões. O debate é o melhor caminho para pensarmos sugestões para equacionarmos este grande equívoco e seus desdosbramentos negativos.

P.S.: Continuo na luta para tentar editar o livro mencionado, qualquer ajuda será bem vinda!

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Falácias sobre o sistema penitenciário como panacéia social.

Como texto de abertura deste espaço, lanço à reflexão - e ao mesmo tempo externo minha indignação - sobre as inúmeras impropriedades que são ditas sobre este assunto, reproduzindo a introdução do livro que tento publicar (Os execrados da av. Zaki Narchi), a respeito da mais sinistra experiência de minha existência:
Durante toda a minha vida, sempre me senti incomodado com a visão ou simples lembrança de qualquer prédio cerrado com grades, destinado a encarcerar seres-humanos. Parecia-me uma solução estúpida, ineficaz e perigosa - por mais bem intencionado que fosse o objetivo desse constrangimento. Mesmo profissionalmente (trabalhando há nove anos na Polícia Civil Paulista), me repugnava o objetivo final de minha ação no cumprimento do meu dever legal: depositar o infrator em um calabouço governamental para que seu corpo fosse meramente expiado, numa espécie de vingança pública contemporânea, sem objetivos reais de recuperá-lo. Em abril do ano de 2.006 passei por uma experiência que me fez entender a razão daquela repugnância instintiva. Uma determinação judicial injusta - que não vale a pena discutir nesse contexto - fez-me provar do amargo e contraproducente meio, que a sociedade acredita ter encontrado, para reeducar cidadãos que delinqüiram ou que estão sob suspeita de terem infringido alguma lei penal. Mesmo tendo como palco dessa desventura uma instituição penitenciária que não encontra reflexo em nenhuma outra prisão do estado brasileiro, com suas singularidades e estilo próprio de auto gestão, acredito que esse súbito e desleal enclausuramento, despertou em mim uma indignação a muito contida, desvelando durante esse período em que parte de minha existência perdeu-se em algum lugar daqueles metros quadrados, dentro daqueles muros que encerram tanta revolta, ociosidade e desesperança; imensurável repúdio a essa ação justiceira do Estado. Entulham-se presos diariamente nas cadeias, e a justiça continua a ser sentida como simples punição e vingança.
Pretendo compartilhar, através dessa experiência; impressões e constatações da ineficácia do atual modelo penitenciário brasileiro e seus desdobramentos negativos, partindo do insólito universo de ex-agentes da lei encarcerados - o Presídio Especial da Polícia Civil do estado de São Paulo - com pertinente comparação à segregação de presos comuns, pontuando os efeitos devastadores do mero isolamento sem proposta de reeducação e reinserção social. Sob a ótica de quem passou cento e dois dias recluso naquela instituição prisional (P.E.P.C.), testemunhando estórias e ouvindo relatos de outros internos, funcionários e visitantes; passo a discorrer sobre dramas pessoais que explicitam a contingência de fatos inusitados, que podem mudar o destino de qualquer membro da comunidade, revelando a ele uma nova sobrevivência em situação de cruel condicionamento ao falho sistema carcerário expiatório. Busco ressaltar a extensão da punição estatal para a família do penitente, seu único esteio durante o enclausuramento; as isoladas tentativas altruístas de conforto e ressocialização do preso, realizadas por religiosos e pessoas abnegadas, e também os oportunismos e proselitismos; a inutilidade do sistema prisional como ele se apresenta atualmente; a descaracterização da proposta inicial da progressão do regime de cumprimento da pena dos condenados; a sexualidade e a promiscuidade nos calabouços governamentais; o descrédito dos detentos nas instituições oficiais; o reflexo da não ressocialização do infrator e o aliciamento por parte das facções criminosas; o distanciamento de legisladores, governantes e julgadores das problemáticas sociais que alimentam a "indústria da punição"; e, principalmente, o círculo vicioso da violência criminal urbana, relatada pelas mídias, que omitem em suas notícias, as violências sociais que o originou; e a demasiada execração pública e super exposição de delinqüentes, as quais avalizam o caráter velado de vingança por parte da sociedade, ao ir à forra dos transgressores às regras de conduta; e os reflexos negativos que essa mesma sociedade colhe com essa atitude inconseqüente. Recordando as palavras elucidativas do jornalista Jorge Coli, no artigo "O crime de todos nós", publicado no jornal "Folha de SP": "Diante de um crime, é fácil reagir instintivamente, desumanamente. No impulso, 'pagar a pena', punir, vingar, brotam primeiro. Só lá para trás, bem depois é que se arrasta, quase irrisória, a idéia de compreender, de sanar, de educar, de recuperar".
Nos momentos derradeiros do martírio de Jesus Cristo, o filho de Deus fora crucificado ao lado de dois malfeitores, um à sua esquerda e outro à sua direita. Um dos ladrões, percebendo que o especial momento extrapolava o ritual de expiação e flagelo, tratando-se realmente de algo sagrado, num último ato de arrependimento, suplicou:
- "Senhor, lembra-te de mim quando estiveres no paraíso"; ouvindo, em seguida, a resposta confortadora de Jesus:
- "Em verdade te digo, que ainda hoje, estarás comigo no paraíso"; transformando um bandido confesso - São Dimas - no primeiro santo da Igreja Católica. Lembremos deste exemplo quando sentirmo-nos aptos a vestir o manto da vingança, e execrar publicamente qualquer suposto infrator das regras de convívio, sem esmiuçarmos o emaranhado de dramas sociais que culminaram em ato de delinqüência. Ressaltando, que por trás de toda anomalia social, esconde-se a culpa coletiva e a parcela de negligência de todos nós. Reafirmando que o Estado – representando toda a comunidade – têm o direito legítimo de punir, e o dever inescapável de recuperar! O debate, o mea culpa, a busca por soluções capazes de equacionar essa aberração social em forma de panacéia aos conflitos contemporâneos, faz-se urgente... Reflitamos!