Total de visualizações de página

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia!


Há aproximadamente quinze dias, foi noticiado nos jornais "Correio Popular" e "Diário do Povo" de Campinas/SP o seguinte acontecimento: um morador de rua foi agredido violentamente por um estudante de medicina (o qual estava acompanhado por mais dois amigos e fugiu logo após a covardia, em um veículo AUDI/A3), na saída de um shopping, porque - segundo o próprio agressor, ele não gostou do modo como o pedinte olhou para ele. Posteriormente localizado e encaminhado a uma Delegacia de Polícia, o estudante "esclareceu" que cometeu o ato de selvageria porque aquele mendigo "não acrescentaria nada à sociedade, no futuro", sendo liberado em seguida. Recordo-me de um providencial texto de Marina Colassanti, intitulado "Uma Crônica", o qual nos desperta para o fato de que a gente se acostuma a certos acontecimentos em nossa vida, mas não deveríamos. As reiteradas notícias padronizadas que nos chegam sobre esse tipo de canalhice (do índio Galdino - confundido com um mendigo - queimado em Brasília; à empregada doméstica violentamente espancada no Rio de Janeiro - segundo seus agressores - confundida com uma prostituta), são sempre protagonizadas pelos filhos da classe média alta, motivados pelo mesmo desprezo aos seres humanos menos favorecidos. Assistimos ao noticiário, ficamos estarrecidos por alguns minutos e voltamos ao nossos afazeres, aguardando à próxima novidade macabra. Relegamos a gravidade dos atos cometidos por esses biltres à fatos corriqueiros e continuamos injustos, nos tornando insensíveis. Façamos um exercício de reflexão e desconstrução das notícias frias e superficiais contadas pela grande imprensa sobre esses inaceitáveis crimes cometidos e tratados como "curiosidade", à partir desta agressão ocorrida aqui em Campinas. O referido shopping está instalado em uma área nobre, e é frequentado por pessoas abastadas que tiveram as melhores oportunidades (estudo particular; convênio privado de plano saúde; boa alimentação; segurança pública que funciona...). O estudante agressor frequenta uma faculdade de medicina pública de alta qualidade - onde as pessoas bem nascidas acima citadas têm acesso. Os mais pobres pagam por faculdades privadas de qualidade questionável (comprovadamente inferiores às públicas) e ainda seus impostos, os quais sustentam a universidade pública do playboy. Depois de medicado, apurou-se que o suposto mendigo agredido adentrou a pararia do shopping, consumiu e pagou com cartão de débito, apresentando inclusive ticket comprobatório. Falando um pouco de sua vida afirmou que frequentou até o quarto ano de direito em uma faculdade privada de ensino superior, não a concluíndo por falta de recursos. O beócio estudante de medicina, assim que se formar, certamente trabalhará em hospitais públicos ou em alguma clínica - da profusão de convênios médicos menores - que visam as classes "C" e "D", agora interessantes pelo recente poder de compra adquirido, atendendo justamente a pessoas que - segundo ele - "não acrescentarão nada a sociedade futuramente". O crime de lesão corporal dolosa (a agressão) será apurado pelo Distrito Policial da área, onde cabe outra reflexão. Até alguns anos atrás, Campinas possuía doze distritos policiais, e estudos para a eminente instalação de outros para suprir a carência de segurança pública. Áreas carentes como a região do Jd. São Marcos e do Terminal Campo Grande seriam as próximas beneficiadas pelo governo estadual, existindo até uma frágil iniciativa da instalação de uma delegacia na primeira área citada, mais precisamente no bairro "Recanto da Fortuna", até hoje não concluída. Os mais abastados se "anteciparam" e viabilizaram a instalação do 13o. Distrito Policial no coração da área nobre, a qual inclui o tal shopping, e a casa do playboy agressor, em detrimento da eterna espera dos mais pobres das áreas críticas e violentas. Abstraindo a inconsistência do argumento, e tentando enxergar pelo prisma do descelerado estudante de medicina, ignorando que um mendigo é ser humano, que as pessoas merecem respeito, e outros "ensinamentos" que certamente recebeu de seus pais; imaginemos o mesmo fato invertendo os personagens. O "mendigo" seria execrado publicamente, condenado pela justiça e pela opinião pública, e o fato teria uma repercussão bem maior que a atual. Órgãos de imprensa bradariam que a vilência estaria atingindo níveis alarmantes, que isso não poderia continuar acontecendo, e comandantes da força policial seriam entrevistados. É pertinente citar que a revista "Caros Amigos", do mês de maio/2009, tráz como matéria de capa, uma reportagem sobre "Por que a justiça não pune os ricos" (pág.13). Para auxiliar e enriquecer nosso debate, reproduzo um trecho que explicíta a opinião do juiz criminal Sérgio Mazina sobre o tema: "... a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da integridade física. Isso constribui para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas - por sua condição social - a cometerem delitos contra o patrimônio. O Código Penal Brasileiro criminaliza a pobreza". Colassanti, ainda diz em seu belo texto: "A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesma! Um abraço!