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domingo, 30 de setembro de 2007

CARTA RESPOSTA À PROFESSORA CARLA

Há aproximadamente dez dias, numa noite fria destes tempos difíceis, encontrava-me na casa de um amigo, e aproveitei a oportunidade de assistir a um debate na TV fechada (paga), no canal da O.A.B. (Ordem dos advogados do Brasil), onde uma advogada debatia os problemas da repressão policial nas periferias, permeando e comentando trechos do filme (que ainda não vi) "Tropa de Elite". Bastante exaltada, e do alto de uma espantosa empáfia, talvez justificada pelo conhecimento que ela julgasse ser detentora, bradava com naturalidade as ações repressivas da polícia em áreas de extrema pobreza, sempre apoiada numa definição que repetia reiteradamente para agregar legalidade a tais atos: ..."a polícia é um órgão público de contenção social." Da baixeza do meu parco conhecimento, me senti extremamente incomodado com tal definição. Do prisma do conhecimento científico, catalogado, positivado, esse termo até que se justifica, e de tanto ouvir frases prontas e chavões o ouvido até que se acostuma. Mas, se nos concentrarmos um pouquinho, pararmos a correria diária pela sobrevivência por uns segundos, e nos atermos para o significado real da declaração, a mesma soa ofensiva para quem está do lado de baixo (base) da pirâmide social – não aquela que desenhávamos e interpretávamos nas aulas de geografia ou E. P. B. (Estudos dos Problemas Brasileiros) para os mais antigos – e sim a base achatada, oprimida e inerte dos brasileiros que trabalham apenas para comer! Conter quem? Por que? E, para quem se beneficiar? É aí que começa a nó da questão, professora. Um dos princípios mais importantes da ciência do Direito diz que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário, ficando o dever de provar para quem acusa. Hipocrisias à parte, para o policial e para boa parte da sociedade, este princípio se inverteu. Todo morador de áreas críticas, de extrema pobreza, é visto como potencial delinqüente, não raro, ouve-se comentários depreciativos ao povo que reside em morros, cortiços e favelas; nesses agrupamentos sub-normais "todo mundo é culpado, desde que se prove o contrário". O morador de periferia é induzido a manter diariamente uma conduta irrepreensível, e qualquer deslize, é potencializado pelo preconceito ou pré-julgamento.
Vivemos num momento cultural onde cada indivíduo vale o que consome, e o Estado Providência (que deveria assistir o menos favorecido), ao menos cumprindo as obrigações constitucionais (quando elenca os direitos sociais à educação; saúde; trabalho; moradia; lazer; segurança; previdência social; etc, como sua responsabilidade), é relegado em detrimento do Estado Policial e repressivo. Posto isto, chega-se facilmente à conclusão de que a tal "contenção" social, diz respeito a um órgão público (que deveria atender à maioria), a serviço de uma minoria abastada, que teme pela revolta, rebeldia e violência de uma massa que não têm nada a perder. Se visitarem as cadeias (espaço físico destinado meramente a tirar do convívio social indivíduos que delinqüiram), constatarão que lá a população carcerária é constituída, em sua quase totalidade, por gente oriunda destas áreas de extrema pobreza. Parafraseando aquele provérbio antigo: "ao suburbano não basta ser honesto e passivo, deve parecer honesto e passivo." Apesar de bombardeado diuturnamente por uma ávida e feroz indústria do consumo, através de todas as mídias, e saber que jamais poderá usufruir daquilo que lhe escancaram, deve permanecer dócil, e conformar-se com sua condição inferior, sempre contido por quem é pago indiretamente pelo seu imposto cobrado obrigatoriamente (conforme pesquisas publicadas esporadicamente, quem paga mais impostos e tributos no Brasil, são as pessoas menos favorecidas). A mídia e os órgãos oficiais, estrategicamente, tratam de rotular todo o povo pobre de alguma maneira peculiar, seja pela classe social, pela cor da pele, pelas preferências artísticas, pela localização geográfica, etc., como uma tribo problemática e sem anseios, porém, como definiu sabiamente o rapper Mano Brown: "cada favelado é um universo em crise", e cabe a polícia "conter" e monitorar essa crise, daí o erro total de agressão mútua entre iguais (policiais e pessoas oriundas da mesma classe social), para benefício e regozijo de quem assiste a tudo lá do alto, formulando teorias mirabolantes e vomitando uma profusão de falácias. Certa vez, um adolescente infrator acusado de cometer um pequeno delito era abordado por mim, e aproveitava para desabafar enquanto era averiguado, tecendo o seguinte comentário: "seu Djalma, o senhor eu respeito que venha me abordar e me investigar, o senhor usa sapato e me respeita, mas seu parceiro vem querer me prender usando Nike doze bolhas, aí é falta de respeito, quer me prender e é igual eu, tá tirando a favela..." Só entenderá essa passagem, quem conhecer profundamente a sociedade, e o que os dessasistidos esperam dela. "Só quem sabe onde é Luanda saberá me dar valor", um abraço afetuoso!

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Polaco

Obrigado pelas palavras de incentivo, mas o caminho é árduo, e o assunto é árido. Cada vez mais descrente das boas intenções humanas, prossigo " postando" minha experiência, mesmo que tenha que reproduzir todo o conteúdo do livro neste espaço. Quanto ao questionamento da professora Carla - do ensino médio da rede pública - creio que posso ajudá-la a compreender esse nó a que você se refere, responderei mais especificamente no próximo post. Amigo Luciano, gostaria muito de conhecer o trabalho de sua ONG, todo o trabalho nesta área ainda não é suficiente para corrigir este equívoco histórico chamado sistema carcerário. Um grande abraço a todos! E, como mesmo alheia a nossa vontade a vida continua, lá vai o terceiro capítulo do livro, que se refere à uma figura ímpar, que é citado também em outros capítulos do livro: Polaco.


POLACO
Desperto por volta de 07:00h e continuo na cama aguardando que algo se manifeste, porém, tudo permanece inerte. Após aproximadamente uma hora resolvo levantar, escovo os dentes e desço até o pátio, onde está sendo realizada a faxina da parte térrea do presídio, obrigação dos recém-chegados. Avisto apenas um pequeno grupo de pessoas e descubro mais tarde que dormir o máximo suportável, às vezes quase o dia todo, era uma das maneiras encontradas pelos presos para que o tempo passasse, pois não existia quase nada com o que se ocupar naquela clausura. Entre o grupo de internos (termo usado pela administração) está “Polaco", caucasiano aparentando 50 anos; alto; forte; cabelos claros, que sempre era o primeiro a acordar e a descer para o convívio, me aproximo e ouço as primeiras estórias e algumas instruções. Relato o meu infortúnio pela primeira, das dezenas de vezes que terei de repeti-lo nos primeiros dias. De certa forma, ouvir a desdita dos outros era uma maneira dos detentos se relacionarem com o mundo de fora. Através da estória de quem chegava, informavam-se de como as coisas estavam ocorrendo no mundo exterior, e, de forma macabra, sentiam-se bem interiormente com a desgraça alheia, não propositadamente, mas como um meio de evoluírem no mundo ao qual agora pertenciam, como uma escala fúnebre, onde alguém era incluído e teria que passar por todas as agruras que o preso mais antigo já passara: era a escala evolutiva da cadeia! De algum modo, a desgraça do próximo redimia sua vida penitente, ao menos no subconsciente do recluso, por mais que o detento antigo fosse solidário e auxiliasse o novato no cumprimento de sua pena. Alguns internos se solidarizavam, e outros, os “asas negras”, já previam o pior; contavam suas mazelas; o desprezo do poder judiciário para com os presos; os abusos e as injustiças cometidas; e praticamente condenavam sumariamente. Sabiamente, “Polaco” interrompe a conversa, dando o primeiro conselho que valha à pena ouvir:
- “aqui, cada um deve cuidar da sua vida, não falar sobre o processo e tentar abstrair o mundo lá fora. O que mais você vai encontrar entre os presos é Juiz de Direito, Promotor de Justiça e Desembargador”, dizia ironicamente. Aos poucos, viria a confirmar a razão dessas palavras, o assunto preferencial entre os detentos era sobre o processo judicial. Faziam projeções; comparavam casos parecidos; consultavam códigos, acórdãos, sentenças, súmulas, jurisprudências e tudo que pudesse ser relacionado; descreviam perfis, hábitos profissionais e pessoais de promotores, juízes, desembargadores e ministros; adivinhavam sentenças e contavam estórias (a maioria com finais tristes, de injustiças e maus julgamentos). Ao mesmo tempo em que lamentavam o destino dos subjugados, riam dos infortúnios, faziam chacotas onde deveriam indignar-se. Quase todos os internos tinham uma cópia do seu processo entre os pertences, um amontoado de folhas brancas, as quais de vez em quando folheavam exaustivamente. Particularmente, não fui contagiado por esse mal, o que me ajudou a ter menos dias de total revolta e sentimento de impotência frente à frieza das letras impressas no papel, que invariavelmente, diminuíam as chances de defesa do acusado.
“Polaco” era referência em todo o presídio, de uma inacreditável onipresença, aproximava-se sempre sorrateiramente das rodas de conversas, como se conhecesse todos os atalhos do P. E. P. C., e com a autoridade de doze anos de reclusão, interferia em quase todos os assuntos, desmistificando supostos feitos; acrescentando detalhes importantes às estórias ou desmoralizando o “bandidão da hora”, dizendo:
- “pára com isso rapaz, você é um ‘cú’, não mata nem barata!”, disparando com o sarcasmo e o bom humor que lhe eram peculiares. De todos os condenados com quem convivi no P. E. P. C., “Polaco” era o que melhor resistia a tantos anos de inatividade social naquele inútil depósito de seres humanos. Era impossível não alterar o humor, a personalidade e alguns dos seus princípios em situação similar, porém, em raros momentos “Polaco” deixava transparecer sua mágoa com o destino, ou arrependimento - só ficava evidente quando falava de sua mãe e do rumo diferente que sua vida poderia ter tomado se tivesse se dedicado à engenharia (ingressou quando jovem em uma faculdade no Paraná) e não ter se tornado policial civil em São Paulo. Mas, esse momento de introspecção durava pouco, e logo já emendava outra das centenas de estórias que presenciou ao longo da carreira e do período no cárcere. No P. E. P. C. existia um acordo velado que funcionava relativamente bem, o Estado não investia em nada além da alimentação, água e energia elétrica, sendo que todas as benfeitorias e necessidades do preso ficavam por conta dos detentos, que captavam - através do conhecimento pessoal e do prestígio que gozavam quando em liberdade - recursos para a sobrevivência de todos. Em contrapartida, a gestão de fato do presídio, também ficava por conta dos próprios internos, com a intervenção da administração apenas para conter os abusos. "Polaco" (ao lado de um investigador conhecido como "Fininho", que permaneceu longo período encarcerado no P. E. P. C. - e que havia sido libertado pouco mais de um ano antes de minha inclusão - acusado de ter participado do "Esquadrão da Morte" e de ter pertencido à equipe do famoso delegado "Sérgio Paranhos Fleury"), era o policial civil mais conhecido em todo o estado de São Paulo, e havia se tornado o melhor relações-públicas do presídio, demonstrando uma incrível habilidade para amealhar doações para os internos e para o precário funcionamento do lugar. Isso, porém, dividia a opinião da população carcerária, em parte que achava esse ato uma atitude louvável, e parte que não poupava adjetivos negativos para referir-se à sua pessoa, o acusando de aproveitar-se do efeito altruísta que a visão do "purgatório da av. Zaki Narchi" exercia nos ex-colegas de trabalho, os quais contribuíam com o que podiam, por temer destino semelhante ao do pedidor. Dono de um passado de causar espanto nas biografias mais conturbadas, intensas e delituosas do país, e remanescente das piores fases do P. E. P. C., quando os internos mais temeram por sua integridade (inclusive tendo passado curtos e esporádicos períodos no inoperante C. O. C. – Centro de Observação Criminológica – tendo contato com as figuras mais obscurecidas do mundo do crime, como "Pedrinho Matador" e "Pernambuco"), “Polaco” afirmava ter se encontrado no Espiritismo, cujas reuniões organizava as segundas e quintas-feiras na biblioteca improvisada do presídio. De vasta leitura espírita, “Polaco” arriscava-se a confortar e aconselhar internos que estivessem passando pelas inevitáveis crises que o enclausuramento provoca. Contrariando o efeito que o estabelecimento penitenciário incuti no preso, de comprometer gradativamente sua lucidez e sociabilidade - já que o detento não se afina mais com as instituições as quais pertencia ou acreditava quando em liberdade - “Polaco” era avesso ao comportamento de alguns internos que passavam a ter atitudes de desleixo com a aparência pessoal e higiene, ou passavam a comunicar-se através de gírias, denominando objetos com termos adotados por presos comuns, tais como “jéga” ao invés de cama; “boi” no lugar de banheiro ou “bandeco” para referir-se à marmita de alumínio. Quando presenciava tal comportamento, “Polaco” exaltava-se, dizendo:
- “Amigo, aqui é um ambiente familiar, se você quiser viver como preso, te arrumo uma transferência para Tremembé”, em alusão ao presídio comum, destino dos internos do P. E. P. C. que cometessem alguma grave indisciplina. Apesar de ser excessivamente inconveniente às vezes, com brincadeiras que simulavam agressões físicas ou de cunho sexual, “Polaco” tornou-se figura imprescindível à harmonia necessária ao ambiente do presídio, dirimindo conflitos - mesmo os provocados pelos internos que optaram em cumprir suas penas através de uma constante viagem etílica, embriagando-se com o álcool comercializado clandestinamente - e deixará uma lacuna insubstituível naquela ante-sala do inferno, quando merecidamente for libertado. Por vezes, tentei imaginar aquele calabouço sem a presença de “Polaco”, e as previsões não foram das melhores. O ócio permanente do local permitia longos momentos de silêncio, quando algum assunto esgotava-se. Silêncio interrompido bruscamente por “Polaco”, que fitava seus olhos magneticamente azuis nos olhos do interlocutor e repetia uma expressão muito utilizada pelos detentos para descrever a intensidade do problema alheio:
- “...que piça, hein amigo!” Dizia, já saindo, caminhando rapidamente para um afazer qualquer, fugindo do perigo da depressão.
Há mais de vinte anos, um governador do estado disse a um grupo de Investigadores de Polícia que se manifestavam por meio de uma grande passeata, reivindicando melhores salários:
- “vocês têm carteira, arma e distintivo, pra que estão querendo aumento de salário?” Para bom entendedor, fica clara a cultura que se incutiu em uma parcela do efetivo policial civil. Em algumas ocasiões, um pequeno grupo de internos que assumidamente “estavam na correria”, para usar uma expressão adotada pelos próprios indivíduos, se reunia no pátio do presídio e confabulava sobre crimes, grandes golpes e formas das mais criativas para se ganhar dinheiro ilicitamente. “Polaco” aproximava-se como de costume, ouvia atentamente as conjeturas, depois despistava:
- “deixa eu sair daqui, porque aqui só tem bandido de verdade”; ironizava o grupo, e se afastava. Porém, quem ouvia suas estórias, sabia da sua capacidade de articulação, raciocínio rápido, persuasão e liderança. Uma mente capaz de comentar com lucidez qualquer fato novo, e deliberar acertadamente sobre qualquer assunto, com destacado e profundo conhecimento sobre a sociedade; das atitudes e pensamentos mais nobres, às obscuridades e oportunismos mais rasteiros. Uma grande capacidade intuitiva, adquirida à custa da convivência em um mundo profissional repleto de ardis, vilanias e más intenções. Um indivíduo que, independente de eventuais delitos que tenha cometido, deveria estar sendo aproveitado, e contribuindo de alguma forma para o desenvolvimento social. Trancado há doze anos no sistema penitenciário, sendo apenas um ônus para o estado, sem nunca ter sofrido nenhuma tentativa efetiva de ressocialização, demonstrava que era realmente muito difícil tentar entender a máquina estatal, e o que pretendiam os que criaram esse mecanismo inútil e oneroso de mera punição ao corpo e à mente do condenado.