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segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mente Criminal

Camila: Parabéns pela iniciativa de ler o livro "Vigiar e Punir", estamos juntos. Um abraço!

Carlos: A respeito da polêmica criada após a veiculação dos artigos do apresentador Luciano Huck (publicado no jornal "Folha de S.P.", o qual foi vítima de roubo no badalado bairro dos Jardins em São Paulo/SP), e do escritor Ferréz (artigo resposta em forma de conto, publicado no mesmo jornal, com o objetivo de explicitar a realidade e mostrar um pouco a outra face dos fatos, e o que origina essa violência), já dei minha opinião no post Tropa de (a) Elite - o que você tem a ver com isso?. Sobre as opiniões publicadas que valem a pena comentar, lamento o artigo bem escrito, mas fora de propósito da excelente Alba Zaluar, a quem respeito muito e admiro todos seus artigos publicados naquele jornal (exceto esse sobre a polêmica); e destaco o ótimo artigo escrito pelo cantor Zeca Baleiro (O rolo do Rolex), que pode ser lido na íntegra no blog "O lado B de Mara", linkado aí ao lado. Obrigado!

Denise: A corrupção no Brasil data dos primórdios da nosso formação como sociedade. Fomos descobertos como uma colônia de exploração, onde se retirava tudo o que tinha valor comercial e enviava para a terra do colonizador. Ao contrário das colônias de povoamento, cujos pioneiros tinham também a intenção de explorar, mas para se estabelecer na terra, aqui desde o princípio instituiu-se essa característica da usurpação do público pelo privado, de se levar vantagem em tudo, de desprezo mútuo entre as instituições oficiais e os cidadãos. A formação do caráter do brasileiro é muito bem aludida na obra "Macunaíma" do autor Mário de Andrade. Porém, corrupção não deve ser compreendida apenas pelas chamadas dos jornais da grande imprensa, divulgando escândalos diários; deve ser estendida para nossas ações, onde devemos verificar se no nosso raio de ação, não tomamos atitudes igualmente vis, travestidas de "esperteza" ou o famigerado e corrosivo "jeitinho brasileiro". A propósito, seria ingenuidade acreditar que em um batalhão policial como o BOPE não exista corrupção, o mesmo é formado por pessoas de momentos de esclarecimento diferentes como todo grupo. O autor do filme "Tropa de Elite" apenas pretendeu enfatizar a diferença entre os grupos policiais, e a motivação justiceira do Capitão Nascimento e do batalhão a que ele pertencia, o qual era menos corrupto em relação a envolvimento com marginais e achaques, mas que degradava intensamente o dever policial com execuções e torturas. No confuso momento em que vivemos, um personagem criminoso vira herói nacional, e a morte é mais tolerada (e até reverenciada), do que um delito de corrupção. Os presídios que abrigam policiais estão repletos de estórias que ajudam a esclarecer esse nó, dando uma indicação onde o problema se inicia, com uma profusão de ex-policiais que participaram da mesma guerra civil que o Capitão Nascimento, de lados diversos, às vezes dos dois lados, em momentos diferentes; aprofundando e explicitando menos superficialmente os problemas sociais e equivocadas avaliações. A seguir reproduzo um dos capítulos do livro que tento publicar, sobre uma das inúmeras figuras que me fizeram refletir sobre nossa sociedade, na traumática vida entre muralhas. Um abraço!

Mente Criminal

Parecia que o termo havia sido criado para descrevê-lo. Todas as outras formas de referi-lo seriam impróprias sem a utilização dessa palavra: oportunista. Observando a definição empregada no dicionário Aurélio para oportunismo, desfaz-se todas as dúvidas e ressalta-se a atitude desse interno que dedicava grande parte do seu tempo ocioso à engendrar novas artimanhas para encurtar o caminho que leva ao sucesso, desde que esse percurso fosse sem muito esforço e paralelo à via legal e mais árdua: ...”acomodação às circunstâncias para se chegar mais facilmente a um resultado”. Sua figura franzina; sempre arrumado, com camisas para dentro da calça; cabelos penteados com minúcia formando um estilo antiquado de corte e sempre ostentando um relógio de marca importada, transitava quase imperceptível pelo pátio de convívio. Tinha facilidade em estabelecer intimidade, bastando encostar em qualquer “banca” e começar a conversar, com sua fala arrastada, intercalando palavras rebuscadas (impropriamente empregadas no diálogo), com gírias (essas ditas com grande propriedade). Fingia ter muita simpatia e apreço pelo interlocutor, e em pouco tempo de bate-papo conseguia ouvir confissões, arrependimentos, segredos ilícitos, desabafos, etc. Era conservador, machista, racista e superficial, o que facilitava sua fácil aceitação nas rodas de conversas, quase sempre sobre futilidades e “teorias” equivocadas. Também era inteligente, mas mal intencionado. Tudo para ele tinha que ser feito da forma ilegal, levando alguma vantagem, ludibriando, induzindo alguém ao erro. Sua cabeça pensava em crime ou ilegalidades todo o tempo, e todo acontecimento - por mais corriqueiro que fosse - era rapidamente traduzido pelo sua índole viciada e convertido em projeto de futuros delitos, o que levou os detentos do P. E. P. C. a chamá-lo pela alcunha de “Mente Criminal”. Sua fama espalhou-se pelo presídio, e quando alguém queria uma opinião segura sobre a possibilidade de algum ardil dar resultado positivo, era logo aconselhado:
- “Pergunte ao ‘Mente’, ele é a pessoa que pode te ajudar...” Se era convidado por um interno para tomar um café na “boqueta”, “Mente Criminal” já divagava sobre a beberagem: “esse café pode ser superfaturado, depois desconta o valor real pago e pega a diferença, mas também dá pra desviar ou misturar com algum produto, tá com um gosto estranho mesmo...”. Ficava atento a todas as conversas, sempre com a intenção de aprender ou de dar algum palpite que lhe valesse alguma vantagem. Aproximou-se do interno mais talentoso, dos poucos que exerciam a atividade de pintura com tinta óleo sobre tela no presídio, ficou amigo e logo começou a “ajudá-lo” a comercializar seus quadros, vendendo-os a conhecidos e familiares por preços muito acima do combinado com o artista; e, posteriormente, ainda cobrava comissão do mesmo pelas vendas. Certa vez, assistíamos ao noticiário sobre o pagamento do seguro obrigatório para vítimas fatais em acidentes de trânsito e “Mente Criminal” logo se interessou pelo assunto, vislumbrando aproveitar-se do momento de dor dos familiares das vítimas, para adquirir as assinaturas necessárias para solicitar o referido seguro, e obviamente, embolsar o dinheiro para ele. Sempre interessava-se pelos crimes imputados aos novos internos incluídos no P. E. P. C., indagando:
- “Qual o B. O. daquele novato, ali?” E quando era informado, partia rapidamente para a abordagem inicial, dizendo: “esse golpe eu ainda não conheço, deixa eu ir lá dar as boas vindas”, e dirigia-se para o encontro com desmedida cordialidade. “Mente Criminal” aproveitou-se do seu drama do encarceramento para comover antigos parceiros e amigos e angariar algumas doações, sempre com sua conversa demagógica, carregada de lugares comuns. Com sua ambição e seu “tino comercial”, vislumbrava lucro até na esdrúxula estrutura da prisão, que constantemente precisava de reparos em coisas básicas como chuveiros, torneiras, manutenção da quadra de esportes, etc. “Mente Criminal” pedia doações a colaboradores externos, os quais - comovidos com as parcas instalações do cárcere e com sua má sorte - colaboravam na medida do possível. Posteriormente, “Mente Criminal” cobrava dos demais internos, rateando o valor do objeto doado, como se o mesmo tivesse sido comprado, apossando-se do dinheiro arrecadado. “Mente Criminal” vinha de uma infância em um bairro pobre e violento, mas detestava pobreza, e não se identificava com suas origens. Era extremamente preconceituoso, e seu principal alvo era o presidente da República. A implicância com "Lula" era demasiada e não justificava-se por divergências políticas ou ideológicas, mas pelo fato de não aceitar um homem de proveniência humilde e sem sofisticações, exercendo um cargo tão expressivo. “Mente criminal” exprimia o pensamento advindo da herança colonial, de verdades socialmente construídas; institucionalizando o “levar vantagem em tudo”, não importando o meio empregado; a valorização do usurpador bem sucedido em detrimento do virtuoso desprovido de bens materiais; e a não aceitação do seu igual em posição de destaque. Não media esforços para enterrar seu passado de dificuldades, e queria “vencer” de qualquer modo, não importando a maneira de conseguir esse intuito. Desejava ser aceito no meio dos “bem nascidos”, os quais sempre o desprezaram, e cujo circulo social “Mente Criminal”, irremediavelmente, só conheceria pela porta dos fundos. Sabia na ponta da língua nomes de grifes de roupas, marcas de carros, e demais segmentos da cultura do consumo inútil, porém, não tinha conhecimento científico de nada, desperdiçando sua destacada inteligência. Não cogitava “vencer” pelo caminho árduo e honrado; e considerava apenas os meios ilícitos - que o acompanharam em toda a sua trajetória profissional - como forma eficaz de atingir o sucesso. Em uma conversa com “Mente Criminal” na quadra de esportes, confidenciava sobre a minha intenção de criar uma Organização Não Governamental (ONG) para discutir e encontrar propostas para, efetivamente, ressocializar detentos do sistema prisional, e não meramente puni-los, como acontece realmente; para impedir que a ausência de políticas de reintegração social de infratores, se revertesse em novos delitos cometidos contra a própria sociedade, através do recrutamento de presos execrados, aliciados por facções criminosas. Falávamos sobre as mazelas e falhas na segregação do delinqüente apenas como vingança pública, e todos os efeitos negativos que se voltariam para a comunidade, e a necessidade de se fazer algo para desmistificar a hipocrisia da reeducação e fugir das “receitas” mirabolantes dos pseudo-especialistas que nunca estiveram do lado de lá da grade. “Mente Criminal” ouvia à tudo atentamente, e concordava sobre o teor do assunto debatido, chegou a oferecer-se para ajudar nesse trabalho, porém, desistiu quando não conseguiu mudar um ponto do projeto: o fato da iniciativa ser “sem fins lucrativos”. Gabava-se de conhecer um esquema criminoso para tudo: concursos públicos; diplomas escolares; aberturas de contas bancárias; sumiços de parte de processos judiciais em varas criminais; aprovação na segunda fase do exame da Ordem dos Advogados do Brasil; financiamentos de veículos com documentos falsos, etc., e despertava em mim uma indignação quase incontida quando relatava esses absurdos. Porém, após áspera interpelação sobre sua consciência e sobre os reflexos devastadores que essas “sacanagens” causariam no seu próprio meio social, “Mente Criminal” desconversava, alegando que se ele não usufruísse dessas irregularidades, outros o fariam. Era totalmente inconseqüente, e o fato de galgar alguma vantagem financeira, que supostamente o elevaria a mais um andar da escala social, justificava para ele qualquer ato espúrio. Reverenciava os mais abastados, principalmente os de famílias tradicionais, que deveriam manter-se endinheirados e inatingíveis, por terem “berço” ou pedigree, como repetia constantemente. Mas, paradoxalmente, admirava os “novos ricos”, os quais haviam conquistado sua riqueza através de espertezas, trapaças e fraudes. Desprezava os honestos e pobres, que segundo seu entendimento não passavam de tolos e fracassados. Esse pensamento norteava as ações de “Mente Criminal”, que - ao contrário de alguns presos do P. E. P. C. - não havia saído de seu estado de consciência, arriscando-se a enveredar por caminhos delituosos, motivado pela ganância. Ele, pontualmente, vivia nesse mundo irregular, por formação de caráter e deturpada visão cultural.
O momento que mais abatia a população carcerária, era quando espalhava-se a notícia da condenação de algum detento que estava “sumariando”, ou seja, respondendo a processo judicial, e que finalmente havia sido comunicado de sua sentença. A fria comunicação de que um preso havia sido condenado a determinados anos de reclusão, caía como uma bomba de melancolia no presídio, e afetava em certa medida todos os internos. A esperança de que o desafortunado fosse absolvido, independente do crime a ele imputado, era coletiva; não por saber-se que o mesmo seria inocente ou culpado, mas pela cumplicidade que se estabelecia com a convivência forçada dos castigados do P. E. P. C., os quais dividiam a carga diária de ódio e indiferença que recebiam da vingativa sociedade. No caso específico de “Mente Criminal”, o que mais me aborrecia não era o iminente desfecho do seu processo judicial, mas o futuro de seu processo de desenvolvimento como ser humano. Aquela penosa segregação, o descaso com que fora tratado pelo mesmo estado que um dia havia lhe contratado, que fora o seu patrão, e que agora o castigava sem nenhum propósito de reabilitação; nada disso tinha lhe servido de aprendizado. O desperdício de sua vida toda dirigida para uma inútil necessidade de aceitação por parte de quem sempre lhe oprimiu. A avidez com que desejava ser acolhido pela aristocracia que o desprezava; a não aceitação de seus iguais, que certamente seriam pessoas melhores que os endinheirados quase sempre sem moral que ele tanto admirava. Nada havia mudado na vida daquele homem comum, que tentava camuflar-se de “bem nascido”, denotando a si próprio um indisfarçável ar de canastrão. O tempo e a inteligência dispensados por “Mente Criminal” para esconder todos os seus traços nordestinos e sua origem humilde, e para arquitetar atos delituosos; se fossem convertidos em algo produtivo para a sua vida, com certeza tornariam seus dias mais dignos e gratificantes. Era doloroso observar que naquele ambiente inútil, cercado de grades por todos os lados, paredes úmidas e arames farpados, “Mente Criminal” - independente da absolvição de seu corpo - condenava sua mente a continuar traçando caminhos equivocados, no anseio de acorrentar seu destino à rabeira do fantasioso universo do consumo, da futilidade e da ostentação. Ironicamente, o homem que orgulhava-se das artimanhas e malandragens que utilizava para mover as peças do jogo da vida, inconscientemente, produzira para si mesmo, um engodo do qual dificilmente conseguiria se livrar; e seguia seus dias, entre ilicitudes, devaneios, ardis e a inseparável armadilha na qual ele mesmo havia se aprisionado, e que certamente o acompanharia, talvez para sempre, quando as grades do P. E. P. C. se abrissem, e ele finalmente pudesse caminhar pela desalinhada calçada da av. Zaki Narchi.

Em tempo: "Interno" era o termo usado pela administração do presídio para referir-se aos presos. "Bancas" eram os locais com geladeiras, fogões e cacarecos agrupados pelos presos para montar cômodos virtuais no pátio do presídio. "P.E.P.C.": (Presídio Especial da Polícia Civil). "Boqueta": local onde eram servidas as refeições no presídio. Até breve.